Título: Reeleito, Bush acumula poder para transformar os EUA por décadas
Autor: Tatiana Bautzer
Fonte: Valor Econômico, 04/11/2004, Internacional, p. A-8
Mais que quatro anos Eleição ampliará influência conservadora no Congresso e no Judiciário O presidente George Bush, que teve sua reeleição confirmada ontem, terá um segundo mandato com potencial para deixar marcas de conservadorismo na sociedade americana por décadas. Com uma vantagem de 4 milhões de votos sobre o adversário, o democrata John Kerry, ele recebe um Congresso com forte maioria republicana, o que facilita a passagem de reformas desejadas por seu governo. Ainda mais importante, o presidente pode ter a oportunidade de acentuar o perfil conservador da Suprema Corte, uma das instituições mais importantes dos EUA pelo seu poder constitucional e de definição de questões sociais. Sua marca na economia deverá ser a reforma no sistema previdenciário e a indicação, até 2006, do substituto de Alan Greenspan como presidente do Federal Reserve (o banco central americano), que poderá ficar no cargo por até 14 anos. Bush é o primeiro presidente desde 1988 (quando seu pai foi eleito) a ter mais de 50% dos votos válidos - 59 milhões, a maior da história do país, com diferença expressiva em relação aos 55 milhões de Kerry. Mas, ao contrário de presidentes reeleitos como Nixon ou Clinton, a margem percentual de diferença foi pequena (51% a 49%). O número de eleitores foi recorde, mas ficou abaixo do esperado. Votaram nessa eleição 114 milhões de pessoas, o que representa 52,6% do total da população em idade de votar- acima dos 51% da eleição anterior, mas longe dos 60% esperados. Os democratas buscavam entender as razões da derrota. Aparentemente, a grande vantagem de Bush deveu-se à mobilização do eleitorado religioso, estratégia desenhada pelo seu assessor político, Karl Rove. Ao invés de buscar votos no centro, Rove dirigiu a campanha para atrair a extrema-direita. A grande dúvida agora é se o segundo governo de Bush será uma versão mais radical do primeiro (já que agora ele tem o apoio popular que não tinha há 4 anos) ou se em seu segundo mandato procurará ser mais conciliador para conseguir consenso em algumas reformas. "O segundo mandato de um presidente é sempre dominado pelo legado que pretende deixar", diz Joel Velasco, vice-presidente da consultoria Stonebridge. Em tese, Bush não precisa buscar acordo com os democratas para governar, mas o cientista político Matthew Smyth, da Universidade de Virgínia, diz que os republicanos sabem que as mortes de soldados e a invasão do Iraque sem acordo internacional custaram capital político. Bush disse ontem no discurso da vitória, em Washington, que "fará todo possível para merecer a confiança" dos eleitores de Kerry, e que um novo mandato é uma nova "oportunidade para unir o país". Mas não está claro se isso se traduzirá numa mudança efetiva nas políticas de governo. Um terço dos eleitores que votaram na última terça identificaram-se como cristãos evangélicos. Na eleição de 2000, 4 milhões de religiosos da base republicana deixaram de votar, parte deles por causa da revelação de episódios do passado da abuso da bebida por Bush. Neste ano, proposta de proibição de casamento gay feita em vários Estados levou mais destes eleitores às urnas. As emendas foram aprovadas em 11 Estados. Bush chamou Rove de "arquiteto" da campanha no discurso. Em Ohio, Estado que garantiu a vitória a Bush, houve mobilização da comunidade amish, grupo que rejeita avanços tecnológicos (energia elétrica, telefone e até máquinas agrícolas). "Acho que houve uma participação expressiva da questão religiosa na vitória. Muitos eleitores decidiram ir às urnas para votar contra o casamento gay", diz Smyth, da Universidade de Virgínia. A diferença na votação popular surpreendeu analistas e o partido democrata. Ao longo da terça-feira, pesquisas de boca de urna divulgadas extra-oficialmente mostravam liderança de John Kerry. Os eleitores de Bush colocaram como problemas principais nesta eleição "valores morais" e segurança dentro dos EUA, enquanto os eleitores de Kerry consideram a economia e a guerra no Iraque suas principais preocupações. "Continua a haver divisão muito clara no eleitorado", diz Smyth. Velasco, da Stonebridge, diz que a vitória republicana no Estado de Ohio é surpreendente, porque esse foi um dos mais atingidos economicamente pela recessão. "Hoje há 250 mil empregos a menos no Estado do que havia em 2000. E, mesmo assim, os eleitores estão mais preocupados com o que vêem como valores morais do que com a economia." Na primeira aparição após a reeleição, Bush citou como prioridades econômicas em seu segundo mandato a manutenção do corte de impostos e o "fortalecimento da Previdência para a próxima geração". O partido republicano pretende reformar a Previdência criando contas individuais de poupança e mudando o sistema de repartição. O custo da transição pode chegar a US$ 2 trilhões. Apesar da ampla maioria no Congresso, a reforma previdenciária deve ser de difícil aprovação e vai exigir extensas discussões. A tramitação só seria fácil se os republicanos tivessem mais de 60 cadeiras no Senado. A marca mais permanente do governo será na Suprema Corte. A nomeação de um juiz neste tribunal é vitalícia e não há como mudar uma indicação depois de aceita. Aqui vale a mesma regra- com 46 cadeiras os democratas ainda têm poder para bloquear a indicação de um juiz considerado extremista, mas certamente maior dificuldade de rejeitar um conservador moderado. A primeira substituição deve ser a do presidente da corte, William Rehnquist, que está com câncer e não conseguiu voltar ao trabalho no início de novembro como previsto, depois de um período de internação num hospital da região metropolitana de Washington. Ao longo dos próximos quatro anos outros juízes também podem se aposentar. Entre os substitutos possíveis estão Charles Pickering e William Pryor. Para presidente da corte, Bush poderia indicar o juiz Antonin Scalia. Aumentar a maioria conservadora na Suprema Corte (hoje o placar é de 5 conservadores e 4 liberais) pode facilitar medidas que atendem à base religiosa, como a proibição do aborto e uma emenda constitucional proibindo o casamentos de pessoas do mesmo sexo. A derrota deixa o Partido Democrata numa encruzilhada. Ficou claro que, depois de Bill Clinton, o partido não mais representa a maioria da população. Num artigo para o jornal "The New York Times", Nicholas Kristof diz que o Partido Democrata distanciou-se do interior dos EUA por adotar atitudes elitistas e recusar-se a discutir religião.