Título: Reeleição ameaça dividir ainda mais o país
Autor: Carlos Eduardo Lins da Silva
Fonte: Valor Econômico, 04/11/2004, Internacional, p. A-9

Em 2000, George W. Bush se elegeu presidente dos EUA com 500 mil votos a menos do que seu principal oponente e graças a uma decisão jurídica altamente contestada sobre a maneira como o pleito aconteceu na Flórida. Esperava-se, dada a questionável legitimidade de seu mandato, que ele cumprisse a promessa de campanha, coerente com o seu governo no Texas, de atuar como unificador de uma sociedade profundamente dividida. No entanto, Bush optou por uma linha de atuação política claramente partidária. Desde o primeiro dia, ficou evidente que seu governo seria um dos mais conservadores da história do país. A partir de 11 de setembro de 2001, ele radicalizou essa maneira de atuar em todas as áreas. Agora, com indiscutível maioria dos votos na eleição com menor índice de abstenção em 44 anos, o presidente pode argumentar que tem o apoio da população para manter e talvez aprofundar as políticas dos últimos quatro anos. No entanto, a inteligência e argúcia políticas de Bush talvez o levem a contrariar as expectativas uma vez mais. No discurso em que reconheceu sua derrota, o senador John Kerry disse ter falado ao presidente da "necessidade desesperada de união" vivida pelos EUA. Na prática, além da retórica, pouco se vai fazer para que democratas e republicanos se unam em objetivos comuns. É da essência da natureza da democracia que partidos adversários combatam para conquistar e manter o poder. Mas o que as eleições de 2000 e 2004 demonstraram é que talvez haja nos EUA do século XXI uma clivagem de alguma forma comparável às que levaram a nação à guerra civil em 1861, ao movimento pelos direitos civis nos anos 50 e 60 e ao debate sobre a participação do país nos conflitos do Sudeste Asiático nas décadas de 60 e 70. A polarização atual é muito mais complexa e sutil do que as anteriores. Abrange uma grande diversidade de assuntos: aborto, armas, casamento entre homossexuais, conflito entre segurança nacional e direitos humanos, fé, papel do Estado em políticas públicas sociais, integração social de imigrantes, entre muitos outros. Ela provoca o confronto entre grupos demográficos e culturais que podem se aliar e se opor de acordo com cada tema. Lida com valores que fazem parte do núcleo central de convicções pessoais. E pode insuflar indivíduos a ações extremas, como demonstraram na década de 90 diversos atentados. Por isso tem sido tão difícil colocar em prática projetos de união nacional para superar as divisões que, em 2000 e 2004, puseram os americanos em campos opostos. Bush conseguiu, como Reagan antes dele, unir minimamente as crenças e interesses dos que aceitam de algum modo a denominação de "conservador". Do lado "liberal", o Partido Democrata e seus principais líderes após a era Clinton vêm inegavelmente fracassando em sustentar um contraponto. Os democratas saíram da eleição desmoralizados e acéfalos. Para se reagruparem, terão de redefinir mensagens e mensageiros. A maneira como o fizerem será tão determinante do futuro do país como o modo de agir de Bush. A primeira batalha dessa nova fase do experimento da democracia americana provavelmente se dará na primeira escolha de juiz da Suprema Corte que Bush vier a fazer. Tanto a pessoa que ele indicar quanto a reação dos democratas serão um bons indicadores do futuro político imediato do país. Se a rivalidade aguda de 2000 e 2004 (já prenunciada nas eleições legislativas dos anos 90 e no processo a Bill Clinton) não arrefecer, o pleito de 2008 poderá repetir e até ampliar as rachaduras e ressentimentos dos últimos quatro anos, com consequências imprevisíveis.