Título: Crise realça o papel da reforma do Estado
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 19/09/2005, Política, p. A5

No momento em que passamos para uma fase de finalização das investigações e, particularmente, de punições dos culpados, é importante ressaltar o que aprendemos com a crise política. Com certeza, o que salta mais à vista são as fragilidades do aparelho estatal brasileiro. Em pleno século 21, o empreguismo, a corrupção e o patrimonialismo ainda estão presentes na administração pública. Os escândalos recentes aumentaram o descrédito em relação ao Estado, já muito alto por conta de suas falhas em prestar serviços à maioria da população e em razão de sua sanha arrecadadora. Mas a indignação com tudo isso só reforça a necessidade de um governo melhor, que seja capaz de enfrentar os enormes desafios sociais do país. Esta percepção, cada vez mais ampla em toda a sociedade, não leva necessariamente à constituição de uma reforma do Estado brasileiro. Muitos ainda acreditam que os problemas do país serão resolvidos simplesmente pela "vontade política", isto é, pela escolha de pessoas e/ou partidos comprometidos com mudanças. É preciso convencer a sociedade que qualquer que seja o presidente eleito em 2006, ele não conseguirá implementar seu programa de governo e realizar ações estruturais contra as principais mazelas brasileiras sem reformar substancialmente a gestão pública. Na verdade, a reforma da administração pública ainda não ganhou o lugar merecido na agenda política brasileira. Diante deste desafio, propus um modelo de ação estratégica em prol da reforma da gestão pública, apresentado no II Fórum de Economia da Fundação Getúlio Vargas, realizado na semana passada, exposição que resumo a seguir. Não se trata de uma fórmula pronta, mas de um exercício para refletirmos e debatermos sobre que caminhos podem ser adotados para aperfeiçoar o Estado brasileiro. O primeiro passo é criar idéias mobilizadoras, capazes de convencer a sociedade e os políticos da importância da reforma da gestão pública, num processo semelhante ao que ocorreu com os conceitos de estabilização e responsabilidade fiscal. A indignação com a corrupção, o desperdício e a má qualidade dos serviços públicos deve ser transformada numa frase capaz de constituir um clamor social e coalizões políticas reformistas. Um Estado para os cidadãos, eis um slogan que hoje angariaria múltiplos apoios. Para que a reforma não se transforme num mero ato de marketing político - quem não se lembra do "caçador de marajás"? -, é fundamental formular um diagnóstico amplo da situação da administração pública brasileira, o qual deve realçar quais são os principais problemas e as propostas para atacá-los. É a partir desta visão mais geral que a política reformista poderá ser ativada de forma conseqüente, acoplando meios aos fins almejados.

É preciso mudar a agenda das eleições 2006

Não há espaço aqui para delinear todos os pontos que deveriam passar por reformas na administração pública brasileira. Destaco quatro deles, os quais deveriam, desde já, se tornar objeto de discussão na sociedade e entre os políticos brasileiros. O primeiro é a profissionalização da burocracia brasileira, algo que passa pela redução dos cargos comissionados, pela mudança da gestão das estatais, por uma política deliberada e publicizada de levar quadros meritocráticos para as funções políticas do Estado, pela capacitação e motivação contínua dos servidores e, finalmente, por uma nova relação entre os governos e os sindicatos, para que os mais pobres não sejam os mais prejudicados pelos conflitos trabalhistas. A regulamentação da Lei de Greve é urgente. Um segundo aspecto do diagnóstico se refere à questão da eficiência do Estado. Para alcançá-la, o primeiro ato deve ser a diminuição do número de Ministérios, das sobreposições entre os órgãos e, em especial, de toda a excessiva regulamentação burocratizadora que marca nossa administração pública. O desperdício de recursos precisa ser combatido com novas técnicas de gestão, como o aprofundamento do uso do governo eletrônico. Tecnologias existem e têm de ser criativamente utilizadas, mais do que são hoje. Tão ou mais importante do que a eficiência é a efetividade. O impacto positivo dos gastos públicos para os cidadãos é bem menor do que o acréscimo de recursos realizado desde a Constituição de 1988. Neste sentido, três temas são essenciais: o reforço da ação intersetorial, desbancando a excessiva (e corporativa) setorialização do Estado brasileiro; a orientação da gestão pública cada vez mais por metas e indicadores; e a melhoria da coordenação federativa, dado que a maioria das políticas é ofertada, hoje, no plano subnacional. A transparência e a democratização do Estado completam o quadro de ações reformistas. Medidas de combate à corrupção, o aumento do controle social da burocracia - com medidas como a criação de um ombudsman nacional e a elevação do número de cargos indicados que passem por sabatina congressual -, além do estímulo à criação de agências sociais independentes que fiscalizem cotidianamente a qualidade da administração pública são ações que mudariam o quadro desolador ressaltado pela crise política. Toda esta agenda terá de ser bem construída, no campo das idéias mobilizadoras e do diagnóstico, e ser legitimada, pela via do debate, junto aos atores sociais e políticos. De toda esta discussão, deve nascer uma coalizão reformista, capaz de selecionar os aspectos mais prioritários e montar um planejamento temporal para a realização das reformas. Deverão ser ressaltados os ganhos que poderão ser obtidos, principalmente para a classe política, cujo sucesso eleitoral depende cada vez mais de sua capacidade administrativa. Por esta razão, o momento estratégico em todo este processo encontra-se nas eleições de 2006, tornando a gestão pública um tópico central da campanha. Se isto não ocorrer, o próximo presidente terá dificuldades de construir os apoios necessários para viabilizar administrativamente o seu governo. E muitas coisas vistas na crise atual poderão, infelizmente, se repetir.