Título: Mercado informal supera os empréstimos bancários
Autor: Janes Rocha
Fonte: Valor Econômico, 19/09/2005, Finanças, p. C8

Crédito Mais pobres contam com agiotas, "vaquinhas" e parentes

O volume de crédito informal na economia está na casa dos R$ 146,7 bilhões, superior aos R$ 139 bilhões registrados pelo Banco Central como empréstimos formais concedidos pelo sistema financeiro às pessoas físicas. A estimativa é do consultor independente e especialista em crédito ao consumidor, Boanerges Ramos Freire, e considera as principais modalidades de empréstimos - aquisição de bens e de veículos, crédito pessoal, cartão de crédito, cheque especial, financiamento imobiliário e penhor. Para chegar a essa estimativa, Boanerges trabalhou com uma série de dados, entre eles os divulgados pelas associações comerciais e pelas redes de varejo que vendem a prazo utilizando seu próprio capital - ou seja, que não operam com financeiras ou bancos. Como referência, o consultor tomou a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que traz os números do consumo das famílias. A POF lista os rendimentos e despesas declarados pelas 48,5 milhões de famílias brasileiras, demonstrando o quanto as despesas superam as receitas em patamares decrescentes, conforme o rendimento sobe entre os que ganham de zero a 15 salários-mínimos mensais. A partir de 15 salários-mínimos, a receita passa a superar as despesas e as famílias encontram folga para poupança. A pesquisa do IBGE mostra que há um "déficit" de aproximadamente R$ 72 bilhões entre rendimentos e despesas, concentrado no orçamento dos que ganham menos. "Esse saldo negativo das famílias é financiado de alguma forma", diz Boanerges, concluindo que, uma vez que a maioria das pessoas de baixa renda não têm acesso ao crédito bancário, boa parte dessa necessidade de financiamento das despesas é suprida com crédito informal. Porém, a POF não traz a informação sobre quanto do déficit é financiado pelos mecanismos formais e quanto vem do mercado informal. "Isso é só uma referência, não há como saber exatamente a participação do crédito informal", afirmou o economista. A primeira leitura que Boanerges faz das análises sobre as quais vem se dedicando desde 2004 é que "o tamanho estimado do crédito informal prova que o potencial de crescimento do crédito para a baixa renda é enorme e pouco atendido". A dúvida que surge é: "Que instrumentos as pessoas de baixa renda utilizam para financiar seus gastos?" O consultor recorreu, então, a outros estudos de pesquisadores em microfinanças, para entender e formar um panorama do potencial de crescimento do crédito junto à população de baixa renda. Um deles é "Mercado Financeiro e a População de Baixa Renda", da economista e pesquisadora Silvana Parente, concluído há dois anos sob patrocínio da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal). No estudo, Parente analisa até que ponto os instrumentos tradicionais do sistema financeiro atendem as necessidades da população mais pobre. Segundo a pesquisadora, especialista em economia popular e rural com mestrado em Harvard, essas pessoas contam com empréstimos de familiares, dos patrões, "vaquinhas" junto aos amigos, cheques emprestados por terceiros, crediários abertos por terceiros e venda de ativos, como animais, quando precisam de dinheiro para pagar eventos como festas de casamento, enterros, reforma da casa. As pessoas preferem fazer crediário na loja do que pegar empréstimo pessoal, e não acham que seja a mesma coisa. Esse comportamento, para ela, explica em boa parte por que o microcrédito não teve no Brasil a expansão que teve em outros países, apesar de ter tamanha carência de acesso ao crédito. Silvana Parente conclui que "não basta dar crédito, é preciso construir um sistema financeiro local", que atenda às reais necessidades e características da população de baixa renda. Em outro trabalho, intitulado "Entendendo as Microfinanças no Contexto Brasileiro" (2002), os pesquisadores Bonnie Brusky e João Paulo Fortuna aprofundam a análise sobre o porquê da preferência pelo crediário e a repulsa ao empréstimo. Segundo eles, é uma atitude que "pode ser explicada, em parte, por uma perspectiva cultural". Crédito em dinheiro é visto como empréstimo, enquanto o termo crédito é usado para fazer referência às compras parceladas. Comprar a crédito na visão dos excluídos do mercado financeiro, segundo estes especialistas, significa ganhar um prazo para poder reunir as condições necessárias para efetuar os pagamentos. O economista Ricardo Abramovay, chefe do Departamento de Economia da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP), concorda que a disponibilidade e o acesso ao crédito e serviços financeiros "estão longe de atender às necessidades" da população de baixa renda. Mas ressalta que nos últimos três anos muito se avançou nesse sentido, especialmente com a criação das contas correntes simplificadas, que saíram de zero para atingir perto de 4,5 milhões de pessoas este ano. Na opinião do economista Joaquim Elói Cirne de Toledo, professor da FEA/USP e também vice-presidente do banco estadual Nossa Caixa, o desenvolvimento de produtos e serviços financeiros para as classes C, D e E ainda enfrenta o desafio de atender a demanda adequadamente e ser lucrativo para os bancos. "Até agora, o máximo que os bancos conseguiram oferecer com sucesso é caderneta de poupança que muitas pessoas pobres usam não para poupar, mas para depositar dinheiro sem pagar tarifas ou impostos".