Título: Anistia poderá repatriar capitais
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 04/11/2004, Finanças, p. C-1

Se ver livre de um novo acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) - o programa atual vence em março de 2005 - é um dos principais objetivos do governo ao discutir a elaboração de uma lei de repatriação de capitais. E essa hipótese é a maneira de tornar uma medida delicada como essa mais palatável politicamente. As minutas já elaboradas, que estão orientando o debate no governo sobre uma legislação que incentive os brasileiros que têm recursos no exterior a internalizarem esses capitais, são inspiradas no que fez a Itália quando da conversão da lira em euro, em 2001. Na ocasião o primeiro-ministro Silvio Berlusconi editou uma lei, conhecida como "Scudo Fiscale", tratando da conversão e, nela, concedeu incentivo por meio da cobrança de apenas 2,5% de imposto de renda sobre o valor repatriado. A estimativa era que os italianos teriam cerca de US$ 450 bilhões no exterior e, desse total, voltaram para o país cerca de US$ 60 bilhões. São inúmeros os problemas a superar na construção de uma legislação dessa natureza no país. Um dos aspectos ainda não resolvidos na discussão da proposta de lei, no grupo de trabalho do governo, é relativo à garantia do anonimato. Imagina-se que o texto legal teria de dar algum tipo de segurança para quem vai repatriar recursos, de que além da anistia dos ilícitos tributário e cambial (este previsto na Lei do Colarinho Branco), seu nome não será exposto. Um caminho para superar isso, que não está técnica nem juridicamente alinhavado, seria a volta, temporária, do instrumento do título ao portador, para promover o reingresso dos recursos.

Mesmo assim, esse é um aspecto que não resolve a questão do sigilo, até porque a CPI do Banestado mostrou que as leis do sigilo bancário e telefônico podem ser infringidas de forma fácil e quem as desobedece não está sujeito a punição. Não se desconhece, no governo, que há uma cultura no país, e particularmente no Ministério Público, de que é crime ter poupança fora do país, ainda que remetida dentro dos padrões legais. Esta não é a primeira vez que o governo Lula estuda uma lei de repatriação. O assunto começou a ser tratado ainda em janeiro de 2003, tão logo Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência da República. Na época, os técnicos da área econômica rechaçaram qualquer iniciativa desse tipo porque a taxa de câmbio estava volátil, eram muitas as dúvidas quanto aos rumos que o governo do PT tomaria. O temor de que Lula fosse eleito e fizesse uma centralização cambial já havia levado muitos brasileiros a remeter recursos para fora do país. Agora, com uma situação cambial bem mais confortável, e diante da credibilidade que Lula usufrui junto aos empresários brasileiros, a anistia poderia ser encarada, inclusive, como uma "reconciliação entre os que temiam Lula com o governo de hoje", avalia um assessor oficial. Em fevereiro de 2003, o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), que reúne dirigentes de grandes empresas nacionais, chegou a sugerir formalmente ao presidente Lula a criação de incentivos para atrair ao país dinheiro que se encontra no exterior. Os cálculos dos empresários, no entanto, eram mais modestos: estimavam a existência de cerca de US$ 80 bilhões pertencentes a brasileiros no exterior, não declarados ao Fisco, e um reingresso de pelo menos US$ 25 bilhões com a anistia - cifra que dobraria as reservas cambiais líquidas, hoje de US$ 24,92 bilhões, tornando o país menos vulnerável e livre de um novo acordo com o FMI. Há técnicos que acham essas cifras superestimadas e não crêem no sucesso de uma lei de repatriação, até porque há, no país, uma certa dose de desconfiança em governos, que podem, de uma hora para outra, mudar as regras do jogo. E os que fizeram remessa de recursos ganhos de forma ilegal, como no narcotráfico, por exemplo, não se arriscarão. Há, porém, um fato que corrobora a tese dos que defendem a construção de um arcabouço legal para que, por um determinado tempo (seis meses a um ano), a repatriação possa ocorrer de maneira incentivada. Ao contrário do passado, hoje o ambiente no mundo para o dinheiro ilegal é adverso. Lavar dinheiro na Suíça virou um mau negócio. O país mudou suas leis e criou mecanismos para reprimir a lavagem de dinheiro sujo; a Suíça abriu-se para o bloqueio de bens de origem suspeita e para a celebração de acordos bilaterais para permitir a repatriação. Assim, os brasileiros estariam mais propensos a voltar com seus recursos. Além do que, internamente, não se pode fiar mais nos doleiros para trazer dinheiro do exterior, pois há sempre o risco de eles serem identificados, já que o ambiente, com a proliferação de CPIs e quebras de sigilo bancário, tornou essa uma atividade bastante vulnerável. Se a idéia for adiante, não terá sido a primeira vez que o governo brasileiro faz uma lei de incentivo à repatriação de capitais. Aliás, já foram várias e todas tiveram como princípio a anistia dos crimes tributários e cambiais. O presidente Figueiredo fez uma, no início de 1984, quando o país mergulhou na crise da dívida externa. O governo Collor de Mello também, mas de uma forma sutil, por meio da simplificação dos investimentos em bolsa de valores para estrangeiros (que abrigou brasileiros que investiam fora), através do Anexo IV do Banco Central. Outras iniciativas foram tomadas no passado recente, como a permissão, no governo de FHC, para atualização da declaração de bens sem comprovação de origem. Os especialistas afirmam que a legislação que teve melhor desempenho foi a do governo Collor.