Título: As vítimas dos alcaguetes
Autor: Cavalcanti, Leonardo; Marcelo, Carlos; Faria,Tiago
Fonte: Correio Braziliense, 25/04/2010, Brasil, p. 12

CALEM-SE

Correspondências oficiais revelam o lado perverso de integrantes da censura: além de vetarem letras, denunciavam os artistas e os colegas a investigadores da máquina repressora

Enviado especial Rio de Janeiro ¿ Os cinco segundos anteriores ao disparo verbal contra um censor são marcados pelo silêncio. O cantor Sérgio Ricardo(1), 77 anos, acaba de descobrir que, há mais de 40 anos, em 16 de outubro de 1968, um funcionário público pago para analisar o veto da letra Dia de graça (2)tinha ido longe demais. Além de proibir os versos da canção, classificou o artista como subversivo e o denunciou para que fosse fichado pela máquina da repressão. Um, dois, três, quatro, cinco segundos. Vem o desabafo:

¿ Era um dedo-duro de merda! A função dele era a de censurar, mas achou que poderia, sem provas, vincular meu nome à subversão.

Estamos no Morro do Vidigal, no apartamento do homem lembrado por ter quebrado o violão durante apresentação no festival da Record, em 1967. A paisagem lá embaixo é metade mar, metade lajes da favela carioca. Na noite anterior, um rapaz novato no tráfico foi morto, e agora os taxistas inventam as desculpas mais esfarrapadas para se negar a subir a rua ironicamente batizada de Presidente João Goulart, o último civil a governar o país antes de ser deposto pelo golpe militar de 1964.

Sérgio Ricardo foi apresentado pelo Correio ao ofício nº 393, de outubro de 1968, em que o tenente-coronel Aloysio Muhlethaler de Souza, chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), avisa: havia pedido providências ao delegado regional da Polícia Federal de São Paulo para fichar o cantor nos registros da Divisão de Ordem Política e Social (Dops) da corporação por conta da letra de Dia de graça. ¿Trata-se de uma letra altamente subversiva, nos moldes das que estão sendo produzidas em massa por grupos comunistas que vêm agindo no cinema, teatro, rádio e televisão¿, escreveu Muhlethaler. ¿Aparentemente inocente, a letra referida lança o seu veneno, subrepticiamente, solapando o regime e as instituições. A música em pauta não será liberada pelo Serviço de Censura de Diversões Públicas¿, continuou o censor.

Ter o nome registrado em um órgão da repressão significava dificuldades para qualquer brasileiro. Na época, por exemplo, empregadores cobravam de candidatos a determinados trabalhos um atestado ideológico, uma espécie de ficha limpa, na qual não deveriam constar atos subversivos. No caso de Sérgio Ricardo, pelo menos segundo a lógica do censor, esses atos subversivos estariam claramente demonstrados. Por causa de uma canção, os tentáculos da repressão deveriam se virar contra o compositor. ¿Era uma guerra e eu era um soldado lutando no campo oposto¿, diz Sérgio Ricardo.

Desconfianças Os alvos das denúncias não eram apenas compositores, mas também os censores. Ofício confidencial nº 528/69-SCDP assinado também por Muhlethaler, datado de 30 de setembro de 1969, é um exemplo. No documento, endereçado ao diretor da Polícia Federal de Segurança, o censor-chefe pede apuração contra o subordinado José Vieira Madeira, na época lotado na seção regional do SCDP, no Rio ¿ na lógica de Muhlethaler, aparentemente por um bom motivo: a chance de promovê-lo.

Madeira era acusado de ser um censor mais aberto, sensível à liberação de composições. No documento ao qual o Correio teve acesso, Muhlethaler escreveu: ¿Em algumas oportunidades em que a chefia desejou dar ao mesmo funções de maiores responsabilidades, esbarrou em informações sigilosas que o desabonavam, muito embora suas atitudes e ações nunca refletissem tais informações. Com a finalidade de que seja apurada de fato a verdade, face às razões apresentadas em sua petição, a chefia do SCDP solicita que sejam apurados os fatos e em seguida a conclusão da mesma seja consignada em todos os fichários da Comunidade de Informações¿.

Dez anos depois do pedido de fichamento, Madeira acabou chefiando a Divisão de Censura de Diversões Públicas, entre 1979 e 1981. Ao deixar o cargo, o censor, bacharel em direito, atuou como repórter de jornais brasileiros e de agências internacionais, além de trabalhar em publicidade e assessorias de órgãos federais. Morreu em 1996, em Brasília.

Em entrevista ao Correio no Rio, o ex-advogado da Phonogram João Carlos Müller, que atuou como braço da gravadora com os censores na década de 1970, se lembra da relação com Vieira Madeira: ¿Era um cara preparado, que tinha peito de liberar determinadass músicas e talvez por isso fosse alvo de desconfianças¿.

1 - ¿O subversivo¿ Sérgio Ricardo é o nome artístico de João Lutfi. Nascido em 1932, o músico fez carreira como locutor de rádio antes de virar compositor. Ainda nos anos 1960, fez parte do primeiro núcleo dos integrantes da Bossa Nova. Depois, passou a ser conhecido como autor de músicas de protesto ao regime militar.

2 - Provocação Há poucos registros da música Dia de graça. Durante a conversa com o Correio, no Rio, Sérgio Ricardo cantarolou os versos da provocativa canção: ¿Fez dia claro e eu saí para a rua / Ver a cidade diferente da normalidade / Nenhum militar de arma em punho /Nenhum estudante morreu¿¿.

Escola de censores

Cento e trinta sete dias corridos, o equivalente a 776 horas-aula de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h, com intervalo de 120 minutos. O curso de formação de um censor na Academia de Polícia Federal, em Brasília, era um intensivo prático de vetos e pouco diferente do treinamento de um agente. As aulas incluíam técnicas de armamento, além de atividades físicas e de lógica. Documentos obtidos pelo Correio na coordenação regional do Arquivo Nacional do DF revelam o currículo e a rotina de alunos.

O currículo do 13º curso de formação profissional realizado entre 6 de agosto e 20 de dezembro de 1985 estabelecia que os ¿exercícios simulados ¿ aproximados ao máximo da realidade ¿ serão admitidos quando for impossível ou não recomendada a realização de provas reais, que terá a colaboração da DCDP¿. E estabelecia o conteúdo da matéria técnica de censura, com carga de 30 horas. Um dos objetivos do curso era a identificação da legislação, a descrição da tramitação das canções e a documentação dos registros do autor e das gravadoras. Entre os instrutores dos cursos de formação, havia professores convidados, entre eles alguns da Universidade de Brasília (UnB).

O Correio entrevistou um dos responsáveis pela elaboração do curso. Segundo ele, a matéria armamento e tiro, com 40 horas-aula, foi incluída ainda na década de 1970. ¿Exista uma discriminação dentro da Polícia Federal com relação aos censores, que, por terem curso superior, eram vistos por agentes como corpos estranhos. Por isso, decidimos incluir aulas de tiro para tentar igualar conhecimentos¿, disse ele, que preferiu não se identificar.

Entre 1966 e 1978, a Academia funcionou no Setor Policial Sul. Em 1979, os treinamentos foram transferidos para a nova sede, na Rodovia DF-001, em Sobradinho. Hoje, nas instalações da Academia, de 600 mil metros², há placas de formatura dos cursos de agentes, delegados e peritos. As referências aos censores(3) foram retiradas ou esquecidas. (LC)

3 - Extinção Os cargos de censor foram extintos em 1996 e os antigos ocupantes acabaram sendo enquadrados, dentro do quadro da Polícia Federal, como peritos criminais ou delegados, caso tivessem curso superior de direito. A lei chegou a ser questionada pelo Ministério Público em algumas ocasiões, sem sucesso.

Colaborou Edson Luiz

Autocensura

Diante da censura, os compositores de música popular eram obrigados a adotar uma posição de passividade: todos os versos, sem exceção, eram submetidos à caneta da Polícia Federal. Mas nem todos os artistas se revoltaram contra o cerceamento. As tentativas de evitar proibições provocaram situações curiosas de autocensura ¿ casos em que os próprios autores das canções tentaram se colocar na posição dos censores e orientá-los. Em março de 1973, o baiano Cyro Aguiar, que se destacou nos anos 1970 com o sucesso Crítica, enviou ao Serviço de Censura Federal uma longa explicação ¿ em duas páginas ¿ sobre o conteúdo (nada malicioso, segundo o autor) da canção Mr. Sexo. ¿Não pretendo de maneira alguma ir de encontro à censura nem à moral vigente em nosso país¿, afirmou. Em seguida, detalhou ¿ verso a verso ¿ o sentido moralista da música, contra o ¿sexo livre¿. ¿O texto da minha música tem finalidade cultural¿, justificou, em ofício localizado pelo Correio. Diante de tamanho detalhismo, a censora Maria das Graças Sampaio foi breve: usou os argumentos do cantor para liberar a canção.