Título: A confissão de um censor
Autor: Cavalcanti, Leonardo; Marcelo, Carlos; Faria,Tiago
Fonte: Correio Braziliense, 25/04/2010, Brasil, p. 12

CALEM-SE

Funcionário da DCDP revela bastidores da censura, derruba mitos sobre o trabalho e diz como ficou marcado pelos vetos

É mais uma sala pequena no centro comercial e engarrafado de Brasília. Na porta não há nenhuma indicação do que funciona ali. Ao entrar, o visitante sente um cheiro forte de cigarro e avista uma mesa com pelo menos 10 anos, três cadeiras surradas, agendas de plástico que, de tão antigas, já deixaram de servir como calendário. Na parede, a menos de dois metros do chão, um crucifixo de arame. Há um rádio sintonizado numa emissora que toca apenas músicas orquestradas. O som parece não divertir tanto o dono dos objetos que compõem todo aquele ambiente. M.J, 68 anos, é um policial aposentado que entre os anos 1970 e 1980 atuou na Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP). Hoje, a sala comercial serve para pequenos bicos de advocacia, cada vez menos frequentes.

Em três conversas, a primeira de 40 minutos e as duas últimas de quase três horas de duração, o censor concordou em falar ao Correio sobre a atividade na época da ditadura. Pediu, entretanto, para não ser identificado por conta do estigma que carrega. M.J é um homem metódico; separa grupos de canetas e se exaspera caso o interlocutor altere a disposição dos objetos. Ao lembrar dos casos no período em que atuou como censor, revela raciocínio linear. Intercala opiniões com as informações do trabalho sem perder o fio em um único momento. Parece ter se preparado para contar um dia a história do contrato firmado com o Estado brasileiro para avaliar e censurar obras artísticas:

¿ Alguns dos censores tentam esquecer. Eu não, não tenho do que me arrepender, não fiz nada demais, não machuquei alguém. Sou um cara normal.

Com o fim da ditadura, os censores passaram a ser vistos em artigos acadêmicos como broncos, mal preparados, gente a ser enganada por artistas, que, ao escreverem em sentido figurado, conseguiam ludibriar a censura. É engraçado ler sobre companheiros sacaneados por terem aprovado determinada música que passou para a história como uma obra de arte contra os anos de chumbo. Não era bem assim.

Na década de 1960, houve um recrutamento aleatório de censores por parte dos militares. Gente que entrou na censura sem concurso, pela janela, e não teve uma preparação satisfatória para o trabalho. Mas isso foi no início. Essas pessoas passavam até pouco tempo na função por conta dos baixos salários. A partir de 1970, a coisa mudou de figura. Passaram a ser feitos concursos públicos e começou a se exigir nível superior.

Entrei na censura em busca de estabilidade. Tinha acabado de me formar, mas estava com 32 anos e sabia que não teria pique para iniciar a carreira com gente muito mais nova do que eu. Assim, fiz o concurso para o Departamento de Polícia Federal nos primeiros anos da década de 1970. Na época, para cargo de nível superior, existiam as vagas de perito, delegado e censor. No primeiro caso, os candidatos eram formados em ciências exatas, no segundo, em direito. Restava o cargo de perito, que previa nível superior em qualquer área.

No quadro de censores tinha de tudo, gente formada em direito, letras, pedagogia e jornalismo, por exemplo. Tinha gente preparada, que sabia o que fazer e como fazer. Havia muitas mulheres, a maioria era mulher. Pessoas que falavam três idiomas. Pode ter havido descuidos, sim, mas há casos de liberação consciente. Eu, por exemplo, jamais vetaria uma música como Pedro Pedreiro, de Chico Buarque. Havia uma crítica social na letra, mas você acha que o povão iria entender tal sofisticação? Então, por que censurar se poucas pessoas iriam entender? Não seria possível fazer revolução social a partir de Pedro Pedreiro.

Agora, para ser sincero, nunca gostei daquele trabalho de analisar obras artísticas, mesmo que na época tivesse um certo status. Ser amigo de um censor era um privilégio. A gente tinha sempre ingressos para teatros, shows e cinemas. Existia uma regra que obrigava os produtores a repassarem tíquetes para a gente. No fim de semana, se você não queria ir a um espetáculo, passava para alguém, para um amigo.

Ao acabar a censura, as coisas mudaram. Ter atuado na DCDP virou um estigma, quase como uma doença. Depois de ter sido censor, tive sempre o cuidado de me preservar na minha carreira funcional. Não podia assumir determinados postos de destaque, pois tinha medo de alguém revelar que eu tinha sido censor e minha vida virar um inferno. Alguns dos censores tentam esquecer. Eu não, não tenho do que me arrepender.

Entrevista João Carlos Müller (advogado)

¿Estava ali para resolver¿ Rio de Janeiro ¿ Entre o fim de 1960 e o início de 1970, a Phonogram tinha Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Vinicius de Moraes, Raul Seixas e João Carlos Müller. Este último nunca tocou um instrumento, cantou ou fez um verso, mas era um dos nomes mais importantes na produção de um disco. Müller era o advogado da gravadora, o homem que tratava com os censores sobre a liberação das letras de Chico, Caetano, Gil, Vinicius, Raul e dos outros quase 60 artistas do time da Phonogram, que, como mostrava um anúncio publicitário da época, só não tinha o Roberto Carlos, ¿mas ninguém é (era) perfeito¿. Müller atuava em favor da gravadora na Superintendência da PF no Rio e na sede, em Brasília.

Como era a relação do advogado de uma gravadora multinacional com os censores? Eu não estava preocupado em buscar porquês. Eu estava ali entre os censores para resolver problemas objetivos. A minha ação era viabilizar a atividade da indústria fonográfica.

Não interessava ao senhor o porquê da censura? O meu interesse era o de liberar as músicas. Estava trabalhando para o bem.

Existia negociação com os censores ou com os artistas para liberar as letras? O que acontecia algumas vezes é que eu aconselhava. O compositor vinha com seis músicas. Aí eu dizia: ¿Faz uma bem violenta¿. Aí chegava na censura, o cara vetava a mais violenta primeiro e já se preparava para vetar a próxima. E aí eu dizia: ¿Porra, já vetou uma, vai vetar outra?¿. Isso são truques de negociação, não tem nada a ver com ideologia.

Os censores eram burros? Raramente. Os primeiros, ainda na década de 1960, vieram da Polícia Especial, do tempo do Getulio (Vargas). Depois, a partir da década de 1970, os caras já tinham nível superior, eram bem mais preparados. Agora, no meio deles, tinha o cara que era de direita. Mas esse não era o comum. O comum era o cara preocupado em não perder o emprego.

Mas havia um diálogo de qualquer forma. Alguns surreais. Como, por exemplo, no dia em que eu estava em Brasília, no Máscara Negra (o edifício-sede da PF), para tentar a liberação da Ópera do malandro e disse para o diretor da censura. ¿Porra, doutor Rogério (Nunes), o senhor já cortou três filhos da puta e um puta que o pariu nesta página e vai cortar mais um?¿ Aí eu olhei para a cara dele e ele olhou para a minha e começamos a rir.

Algum artista, depois de ter uma letra censurada,pediu para falar com os censores? Alguns pediam, sim.

E como funcionavam esses encontros? É claro que os artistas não tinham o menor prazer de ir até o censor. Mas às vezes era o desespero. Ivan Lins e Victor Martins chegaram a ter 50 obras censuradas. Não era brincadeira. Imagine o que é para um compositor ter 50 músicas censuradas.

Qual foi a música que deu mais trabalho? A música Cálice (Gilberto Gil e Chico Buarque) virou um ponto de honra. Pedi a liberação várias vezes. E o Zé Vieira (José Vieira Madeira, chefe da censura entre 1979 e 1981) disse para não pedir mais porque aquilo estava ficando chato, estava sendo obrigado a vetar o tempo todo. Aí ele chegou para mim e disse. ¿Quando puder, eu aviso.¿ Um dia ele avisou que eu podia pedir. Pedi e ele liberou. (LC)

Estratégia de gravadora

Ao lembrar episódios onde atuou para liberar letras da MPB, João Carlos Müller, advogado da Phonogram, revelou ao Correio estratégias usadas na época, como a de gravar um disco com letra do general João Baptista Figueiredo para agradar ao então chefe da Casa Militar do governo Médici. Segundo o relato de Müller, um diretor da Philips, dona da Phonogram, conheceu Figueiredo durante almoço na casa do pai do empresário, um militar. O general então mostrou a fita cassete da banda do III Exército ¿ responsável pela Região Sul do país ¿ com a letra musicada, e o diretor da Philips prometeu gravar a marcha. O advogado foi entregar o presente ao general em Brasília e, no mesmo dia, conseguiu audiência e liberou Minha história, uma versão de Chico Buarque para uma música italiana chamada Gesù bambino.

Leia amanhã Os dribles de Chico Buarque, Marcos Valle e Toquinho & Vinicius. E mais: como funcionava a máquina da burocracia repressora