Título: Corrida pelos funcionários públicos
Autor: Maria Christina Carvalho
Fonte: Valor Econômico, 29/09/2005, Finanças, p. C8

Estratégia Governos estaduais e prefeituras atraem bancos com a licitação da folha de pagamento

Governadores e prefeitos perceberam que podem ganhar dinheiro leiloando no mercado financeiro a administração de suas contas. O governo de Pernambuco desbravou o caminho no ano passado. Neste ano, a Prefeitura de São Paulo seguiu o exemplo. O governo de Alagoas e, agora, o Paraná querem fazer o mesmo. O verdadeiro tesouro escondido dessas contas, disse o analista de bancos do Pactual, Pedro Guimarães, é o pagamento da folha dos funcionários públicos. Os negócios já realizados em Pernambuco e na cidade de São Paulo mostram que a conta de cada funcionário público vale cerca de US$ 1 mil calculou Guimarães. No leilão da prefeitura paulistana, realizado em 5 de setembro, o Itaú arrematou por R$ 510 milhões o direito de pagar a folha de salário dos 210 mil funcionários municipais ativos e inativos por cinco anos. No ano passado, o ABN AMRO Real conquistou o direto de pagar os salários de 100 mil funcionários públicos do Estado de Pernambuco também por cinco anos com o lance de R$ 240 milhões. "O nome do jogo do mercado é dar crédito para a pessoa física. A folha de pagamento dos funcionários públicos é a porta de entrada inclusive no crédito consignado", justificou Guimarães. O diretor comercial do Itaú, Ronald Anton de Jongh, já calculava no dia seguinte ao leilão da Prefeitura de São Paulo que poderia vender aos 210 mil novos clientes todo o leque de produtos do banco - de seguros e previdência a crédito para o consumo, cheque especial, fundos de investimento. A folha dos funcionários da Prefeitura movimenta R$ 340 milhões por mês. "Esses clientes valem mais do que os de uma financeira como a Finasa, Losango ou Fininvest porque ganham mais", disse Guimarães. O salário médio dos funcionários da Prefeitura de São Paulo é de R$ 1,6 mil por mês. O analista do Pactual acredita que o interesse dos bancos de um lado e o dos governos por novas fontes de receita do outro podem desencadear uma onda de revisões de acordos a cada nova eleição. Nesse processo, disse, os maiores afetados serão os bancos mais ativos na privatização, que poderão ter os contratos interrompidos e terão que pagar mais se quiserem continuar com a conta dos funcionários. Os bancos mais presentes na privatização foram o Itaú e o Bradesco. No próximo ano, termina o prazo - previsto na privatização - em que as contas dos 800 mil funcionários do governo de São Paulo devem ficar no Banespa. A intenção original é transferi-las para a Nossa Caixa. Mas, a perspectiva de ganhar quase US$ 1 bilhão por elas pode ser tentadora para o governo estadual. O novo veio de mercado é, porém, tão promissor quanto conflituoso. Alguns governantes estão leiloando suas contas passando por cima de acordos selados na privatização de bancos federalizados após custosas operações de saneamento. Todas as privatizações realizadas previam a exclusividade do pagamento das contas estaduais por um certo tempo, incluindo disponibilidades de caixa, salário de funcionários e conta de fornecedores. Outros governantes esperam o vencimento do período de exclusividade, em geral de cinco anos, para leiloar o serviço. Há um indiscutível espaço jurídico para discussões porque a Constituição, no artigo 164 parágrafo terceiro, prevê que as contas de governos estaduais, municipais, de órgãos e empresas públicas devem ficar em bancos oficiais. Para estimular as privatizações de bancos estaduais e federais, o governo editou a Medida Provisória n 2.192-70 que, no artigo 4, parágrafo primeiro, estabeleceu que essas contas poderiam ficar em bancos privatizados até 2010. Várias ações na Justiça já procuraram contrapor-se a essa MP. A mais bem sucedida foi a ação direta de inconstitucionalidade (ADIN) 3.578-9, do Partido Comunista do Brasil (PC do B), reconhecida parcialmente neste mês pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Em medida cautelar acolhida, o STF decidiu que estados e municípios não podem entregar a bancos privados a administração de suas disponibilidades de caixa e depósitos judiciais. Já a conta de pagamento de salários de funcionários, por serem pessoas físicas, sim. A decisão do STF, tomada no dia 14, acabou causando a suspensão do leilão de privatização do Banco do Estado do Ceará (BEC), que seria realizado no dia seguinte. Depois de reavaliar a questão, o Banco Central (BC) remarcou o leilão para 13 de outubro, em novas condições. A conta única do Estado, que envolve as disponibilidades de caixa, e os depósitos judiciais não poderão ficar no BEC após a privatização. Mas ficarão no banco a conta-salário dos funcionários públicos e os pagamentos de fornecedores. "Esse é o filé mignon", disse o diretor de relações com investidores do BEC, Marco Aurélio Vieira Madeiro. O BEC paga a folha de 130 mil funcionários ativos e inativos, além de 180 mil aposentados pelo INSS. Não é por outro motivo que o preço mínimo do foi mantido em R$ 542,721 milhões para a compra de 92% do controle do banco. No caso do leilão da Prefeitura de São Paulo, o Banespa recorreu porque tinha feito um acordo com a administração anterior à atual para administrar conta de 70 mil funcionários públicos. Em troca, diz em ação, renegociou dívida da empresa estadual SPTrans com um desconto de 80% e novo prazo de pagamento, comprometeu-se com investimentos de cunho social no valor de R$ 45 milhões na cidade e cedeu em comodato o imóvel onde está atualmente a sede da Prefeitura. O ABN AMRO, que havia assumido o pagamento da folha de salários dos funcionários pernambucanos ao arrematar o Bandepe em leilão de privatização, teve que desembolsar mais para manter os clientes. Na terça-feira, o governador do Paraná, Roberto Requião, assinou decreto que anula por mais cinco anos a prorrogação do contrato de exclusividade da instituição sobre a conta movimento que estado, que vence em 26 de outubro. A conta gira mensalmente ao redor de R$ 700 milhões, sendo a maior parte na folha de salário dos funcionários do Estado. O Itaú adquiriu esse direito por cinco anos ao comprar o Banestado, por R$ 1,6 bilhão, em leilão de privatização, em 2000. Antes de acabar o contrato, em 2003, o banco acertou renová-lo por mais cinco anos, pagando mais R$ 80 milhões. Mas, o governo Requião achou o valor baixo, especialmente quando confrontado com o pago pelo próprio Itaú em São Paulo. O analista do Pactual concorda com a comparação e calcula que, se o banco pagar pelas contas de salário dos 150 mil funcionários públicos paranaense o mesmo que pagou em São Paulo, teria que desenvolver US$ 150 milhões pela renovação pro cinco anos, ou R$ 375 milhões. Por outro lado, o presidente do Tribunal de Justiça do Paraná cassou, ontem, liminar movida pelo Ministério Público do Estado do Paraná que considerava irregular o convênio firmado entre o município de Cascavel (PR) e o Banco Itaú, em 4 de agosto, para o pagamento da folha dos servidores ativos e inativos. O Itaú se comprometeu a investir R$ 5,5 milhões em projetos sociais para ter essa exclusividade. No mesmo dia em que o STF acatava parcialmente a ADIN do PC do B, dia 14 passado, o governo de Alagoas sancionava a Lei 6.622, que passou inclusive pela Assembléia Legislativa, aprovando a licitação da administração da conta única do Estado, mesmo para bancos privados. A conta única está atualmente nas mãos da Caixa Econômica Federal, desde que o banco estadual, o Produban, foi liquidado em 1996. Pela nova lei, o governo estadual poderá abrir licitação para a contratação de serviços de bancos privados para operacionalizar a conta única. O governador de Alagoas, Ronaldo Lessa (PDT) já foi alertado pela procuradora-geral do Estado, Idelva Santos Ferreira Pinto, que a lei feria a Constituição. Já a prefeitura da cidade de Cascavel (PR) argumenta que assinou o convênio com o Itaú em 4 de agosto, antes portanto da decisão liminar do STF.