Título: O Supremo e o controle de constitucionalidade no país
Autor: Marco Maciel
Fonte: Valor Econômico, 29/09/2005, Legislação & Tributos, p. E2

"Propomos a reformulação da norma para deixar patente o papel do Senado na apreciação da proposta de generalização dos efeitos das decisões"

Diversamente do controle concentrado de constitucionalidade de normas em ação direta, que encerra um juízo de expulsão, as decisões do controle concreto-incidental, em razão de seu âmbito de aplicação, têm eficácia restrita às partes em controvérsia. A consolidação do juízo do Supremo Tribunal Federal (STF) efetiva sua pretensão de generalização com a remessa da decisão ao Senado Federal. A conversão dos efeitos inter-partes em efeitos "erga omnes", aparentemente simples sob uma ótica voluntarista, envolve, entretanto, condicionantes de diversas ordens, que desafiam a racionalidade e o juízo prudencial dos agentes que acionam as instituições do ordenamento jurídico-constitucional. A primeira diz respeito à cláusula "rebus sic stantibus": só é razoável cogitar de estender vinculadamente a decisão a partir do pressuposto problemático - se não implausível - de que todos os possíveis casos de aplicação futura da fonte de direito (texto de lei) censurada tenderá a reproduzir as mesmas circunstâncias fáticas (sociais, econômicas etc.) presentes no caso original. O problema é particularmente grave nas hipóteses de declaração de inconstitucionalidade material da norma sub censura com fundamento na incompatibilidade ou desconformidade de seu teor em cotejo com princípios e disposições da lei maior. A perquirição é, nesses casos, particularmente difícil de dilucidação objetiva, seja pelas razões derivadas da aplicação dos critérios da nova hermenêutica, seja porque se revela problemática, em alguns casos, a exigência de que a vontade expressa pelo legislador da norma, expressão de vontade imputável ao Estado, deva se conformar ou orientar desta ou daquela maneira. A conversão do processo subjetivo/casuístico em processo objetivo (que interessa a todos), ao invocar como indispensável a participação do Senado Federal, não disfarça a quebra do princípio da presunção de legitimidade das leis e atos normativos do poder público, mas apenas confunde o poder de hermenêutica (Poder Judiciário) com o poder de legislação, na já clássica distinção de Ruy Barbosa. Para que essa participação do órgão tipicamente legislativo se efetue sem quebrantamento de seu papel institucional, faz-se mister que a operação de generalização pretendida - em razão do princípio da liberdade de conformação do legislador - se realize sob a égide de diretrizes ínsitas à função do Senado Federal, especialmente a de atuar com olhos no ordenamento jurídico-constitucional como um todo, levando em conta as dimensões da ação legislativa que a doutrina denomina (1) racionalidade jurídico-sistemática; e (2) racionalidade pragmática. A primeira diz respeito à integridade de ordenamento jurídico-normativo como um todo; a segunda, às conseqüências políticas e sociais das decisões. Afinal, são esses os parâmetros de atuação que definem o ato do Senado Federal como um ato político de alcance normativo, e não apenas um simples "ato complementar de decisão judicial", como pretende parte da doutrina nacional.

Exsurge a preocupação com as conseqüências da generalização dos efeitos em relação aos casos julgados

No plano da racionalidade jurídico-sistemática, cumpre levar em conta as modificações institucionais recentes que ampliaram os efeitos vinculantes das decisões em sede de controle concreto-incidental. Essas modificações vão desde a busca da celeridade e da economia processual na declaração de inconstitucionalidade pelos tribunais ao reforço do papel dos relatores dos feitos (artigo 38 da Lei nº 8.038/90 e parte da Lei nº 9.756/98, que altera os artigos 481 e 557 do Código de Processo Civil), às formulas recentes de extensão dos efeitos das decisões casuísticas do Supremo. Note-se que esses mecanismos voltados a conferir eficácia geral à declaração de inconstitucionalidade em sede concreto-incidental não têm o condão de operar de plano uma depuração total do ordenamento jurídico. Eles criam, porém, as condições para a eliminação dos atos singulares suscetíveis de revisão ou impugnação pelas vias jurídico-processuais ordinárias. Neste passo, entra em cena a racionalidade pragmática que deve inspirar a ação do órgão legislativo chamado a desempenhar o papel de "legislador negativo" (ablação de normas). Cuida-se de ponderar os impactos da ampliação dos efeitos para além dos limites da lide, de modo a compatibilizar o princípio de eficácia constitucional com critérios de justiça e os postulados da segurança jurídica e da estabilidade das relações jurídicas. Exsurge, nesse contexto de ponderação político-jurídica, a preocupação com as conseqüências da generalização dos efeitos em relação aos atos singulares pretéritos e aos casos julgados, pretensões rescisórias, sentenças penais pretéritas e proteção da confiança e da boa-fé, além de outras situações ou atos fundados na norma censurada. Enfim, convivendo e acoplado a um amplo sistema de controle concentrado, o modelo concreto-incidental - com todo o seu mérito de homenagear a independência interpretativo-decisória dos juízes e ampliar o acesso à justiça constitucional - requer um escrutínio de máxima prudência no processo de inflexão para a produção de efeitos vinculantes gerais, mediante o processo de realização prática da norma insculpida no artigo 52, inciso X da Carta da República. Nesse sentido, estamos propondo a reformulação da norma regimental pertinente, de forma a deixar patente o papel prudencial e político do Senado Federal na apreciação da proposta de generalização dos efeitos, com o intuito de superar de vez a concepção de que se trata de um procedimento meramente automático ou cartorial, que não se compadece com o elevado papel institucional desta casa no sistema jurídico-político nacional.