Título: A santíssima trindade territorial
Autor: José Eli da Veiga
Fonte: Valor Econômico, 04/10/2005, Opinião, p. A11

É inútil buscar definição precisa ou amplamente aceita para as noções de urbano e de rural. No Brasil, a distinção é municipal, por força do decreto-lei 311 baixado pelo ditador Getúlio Vargas em 1938, no auge do Estado Novo. Todo município deve ter um perímetro urbano e uma zona rural. Quem estabelece as fronteiras urbanas são os vereadores: da sede municipal, que vira cidade por definição, e de eventuais sedes distritais, as vilas. Tal simplismo causa monumental distorção, bastando dizer que a maior população rural está no município de São Paulo, enquanto indígenas das florestas amazônicas são oficialmente tão urbanos quanto os paulistanos do Bixiga. Para ser urbano basta que se esteja no interior de algum desses perímetros traçados pelas respectivas Câmaras. Por isso, é de ordem cognitiva a mais nefasta conseqüência dessa abordagem municipal. Deduz-se da adição de todos os que estão nos perímetros a falsa idéia de que mais de 80% da população seria urbana. Alhos com bugalhos se misturam quando são adicionados habitantes de metrópoles aos de milhares de cidades imaginárias. Por isso, logo o Brasil será o primeiro país do mundo com grande território a declarar urbana toda a sua população. Pois não diferencia residentes em Laranjal do Jarí - no Amapá, com 94% da população oficialmente urbana - dos que moram em algum dos 200 municípios metropolitanos. Para se evitar tão ridícula visão normativa, é preciso recorrer às análises de hierarquia territorial. Elas identificam 49 aglomerações (das quais 12 metropolitanas) e 77 centros urbanos, totalizando 455 municípios nos quais residiam 57% da população de 2000. Como os demais 5.052 municípios (de 2000) são por demais heterogêneos, é preciso que se sejam feitas distinções por localização, tamanho populacional e, sobretudo, por densidade demográfica. Considerando-se que hoje qualquer município que tenha simultaneamente densidade demográfica abaixo de 80 habitantes por quilômetro quadrado e tamanho populacional inferior a 50 mil habitantes, além de não pertencer a aglomerações, estará na base da hierarquia, pode-se delimitar um Brasil rural composto por 4.500 municípios nos quais residiam 30% da população.

Câmaras municipais definem as fronteiras urbanas e tal simplismo legal produz a falsa idéia de que 80% da população vive nas cidades

Em situação intermediária, ou ambivalente, ficam os outros 23% da população que residiam em algum dos demais 552 municípios com densidades e tamanhos populacionais superiores, mas que não chegavam a ser centros urbanos, além de não pertencerem às aglomerações. Esse segundo tipo de abordagem, de caráter nacional, tem forte semelhança com a classificação adotada pelos Estados Unidos a partir do Censo Demográfico de 2000, que rompeu com a dicotomia urbano-rural ao considerar uma categoria intermediária. Todavia, a americana é ainda melhor, pois não se baseia em divisões político-administrativas. Para o U.S. Census Bureau, as áreas urbanas são as mais adensadas, com mais de 50 mil pessoas e um núcleo com densidade superior a 386 habitantes por quilômetro quadrado (podendo ter uma zona adjacente com um mínimo de metade dessa densidade). Fazem parte da segunda categoria as localidades que atinjam os mesmo níveis de densidade demográfica, apesar de terem população inferior: entre 50 mil e 2,5 mil. E a população rural é aquela que está fora das duas. Em 2000, 68% da população americana vivia em 452 áreas urbanizadas, 11% em 3.158 localidades do segundo tipo e os 21% restantes (59 milhões) nas imensas áreas rurais. É uma abordagem que pode ser muito útil para o estabelecimento de comparações internacionais, mas que é de pouca valia para as ações de desenvolvimento, a principal preocupação da OCDE ao propor o terceiro tipo de abordagem, de caráter regional, rapidamente adotada pela União Européia. Afinal, toda região é uma combinação de centros e núcleos urbanos que exercem influência sobre áreas rurais. Então é a combinação desses dois componentes que caracterizam uma região como urbana, rural, ou ambivalente. Por isso, a UE adotou a seguinte "santíssima trindade": 1) é essencialmente urbana a região que tenha menos de 15% da população em localidades rurais, 2) é essencialmente rural a que tenha mais de 50% da população em localidades rurais; 3) é significativamente rural a que tenha entre 15% e 50% da população em localidades rurais. E para saber se uma localidade é urbana ou rural, a OCDE usou um simples critério de corte: densidade de 150 habitantes por quilômetro quadrado. Adaptando-se ao caso brasileiro esta terceira abordagem - de caráter regional - percebe-se que existem 63 microrregiões fortemente marcadas por aglomerações, nas quais está praticamente a metade da população (49%). No extremo oposto, pouco menos de um terço dos habitantes (30,9%) vivem em 388 microrregiões predominantemente rurais, pois incipientemente urbanizadas e com baixíssimas densidades demográficas. E no meio há 107 microrregiões de pouca urbanização, onde reside um quinto da população (20,1%). Este deve ser a referência inicial de qualquer estratégia de interiorização do desenvolvimento digna desse nome.