Título: As jaboticabas e o Protocolo de Kyoto
Autor: Laura Tetti
Fonte: Valor Econômico, 05/11/2004, Opinião, p. A-12

Parece que todos aqueles que, de alguma forma, trabalham ou atuam na área ambiental, sofrem de síndrome crônica de catastrofismo e mau humor. Só que é mesmo difícil manter postura olímpica e positiva quando o tema - embora todos digam conhecê-lo e dele sejam a favor - canaliza tantas bobagens em noticiários, manifestações e no gerenciamento público e privado. Se nossas elites ainda não entenderam e nem se preocuparam em entender o óbvio, como é que podemos esperar que as lideranças intelectuais, empresariais e governamentais tenham suas preocupações voltadas para uma proposta efetiva de desenvolvimento sustentável e se apresentem menos obcecadas pela numerologia monetária e por um economicismo tacanho de curtíssimo prazo? Mais do que emblemática foi a apoteose de comentários e esclarecimentos capengas decorrentes da notícia de que o governo russo enviou ao Parlamento uma proposta para que o país ratifique o Protocolo de Kyoto. Confundiram-se alterações climáticas promovidas pela emissão de gases que causam o efeito estufa - foco mensurável do protocolo - com o buraco na camada de ozônio, que envolve a Terra. E afirmou-se, sem cerimônia, que países como o Brasil, com grandes áreas de florestas, poderão ser beneficiários do tratado, que estimulará projetos de preservação ambiental. Em primeiro lugar, o Protocolo de Kyoto não tem nada a ver com florestas e áreas florestais já existentes. Também não trata do que é habitualmente conhecido como "projetos de preservação ambiental", que cuidam das áreas de recursos naturais e da manutenção da biodiversidade em geral. Ao contrário, o Protocolo de Kyoto não só não quer "preservar", como pretende mudar num processo audacioso - de preferência rápida e radicalmente - a matriz energética mundial, hoje baseada em fontes de abastecimento fósseis, não-renováveis, poluidoras, concentradoras de riquezas, geradoras de problemas econômicos, sociais e políticos, que, ainda por cima, geram o efeito estufa que provoca mudanças no clima do planeta. Mais de 80% dos recursos energéticos vitais à sobrevivência humana são de origem fóssil, e a imensa maioria do pouco que não depende do carvão, gás ou petróleo baseia-se na controvertida e ameaçadora energia nuclear - também finita, poluidora etc. E isso é um enorme problema, pois exige mudanças na base que ampara o estilo de vida que definimos como civilizado, para não exagerar e dizer "desenvolvido". Qualquer coisa que afete a maneira como se lida com os recursos que amparam a geração de energia mundial (petróleo, gás e carvão), gera problemas e traumas terríveis. Até as pedras sabem, por exemplo, que a presença dos Estados Unidos no Iraque explica-se por interesses do presidente Bush em ter algum controle sobre as reservas de petróleo da região. Além dos desastres inerentes à guerra, o resultado mais palpável dessa iniciativa, foi o de expor o cobiçado petróleo a mais ameaças e ao sobrepreço recente de mais de US$ 50 por barril.

Protocolo de Kyoto não só não quer "preservar", como pretende mudar radicalmente a matriz energética mundial

Não há chance de se conseguir um mínimo de racionalidade e de perspectiva de sobrevivência, inclusive do sistema econômico capitalista liberal e do que chamamos de democracia, se o consumo energético se mantiver na situação esquizofrênica em que se encontra hoje. É isso que está na base do "todo" e é esse "todo" que é o ambiente. Devemos encarar que não há nada mais importante para a defesa do meio ambiente, e para não deixar degringolar de vez a qualidade de vida na Terra, do que isso. A entrada em vigor do Protocolo de Kyoto e as obrigações dos países em reduzir volumes quantificados de emissão de gases geradores de efeito estufa direcionam com maior racionalidade e aceleram o processo de mudança do paradigma energético em vigor, já reconhecido como esgotado e inviável até mesmo para os mais míopes olhos economicistas. A importância e o valor disso para o Brasil? Enorme. Incalculável. Uma sorte. E talvez esteja exatamente aí o nosso problema e o nosso azar. O Brasil já é, no que diz respeito ao tema das mudanças climáticas e do Protocolo de Kyoto, um país reconhecido por ter a matriz energética mundial mais renovável. Além da frota de carros a álcool e dos veículos flex-fuel, evitamos as emissões da queima de 25% da gasolina consumida substituindo esse volume pelo uso do álcool anidro. A quase totalidade da eletricidade brasileira é originada em hidrelétricas. Somos exatamente o contrário dos países industrializados e dos que têm níveis de desenvolvimento equivalentes aos nossos: mais de 80% de nossa energia têm atestado de renovável e limpa. No caso do álcool combustível, nossa situação vantajosa chega a ser até assustadora para outros países. Sem nenhum tipo de subsídio ou incentivo político, produzimos um litro de álcool por um custo que, no mínimo, é a metade do atribuído à fabricação da gasolina. E com o petróleo cotado a bem menos do que US$ 50 por barril. Por conta dos diferenciais ambientais positivos na produção de cana-de-açúcar brasileira, do controle biológico de pragas à prática da fertirrigação e do uso do bagaço da cana para geração de eletricidade, cada litro de álcool produzido, queimado nos automóveis, não só não acumula mais gases de efeito estufa como retira cerca de 0,19 kg de monóxido de carbono da atmosfera. Uma enorme contribuição, quando se considera que, todos os anos, substituímos 13 bilhões de litros de gasolina por etanol. Uma grande sorte. Sorte demais para um país cujas lideranças ainda tratam meio ambiente como um simples cuidado com o "verde". Sorte que pode ser desperdiçada, porque nossos governos - tradicionalmente perdidos na gestão dos assuntos de energia e meio ambiente - só não abandonam mais, e pior tratam, o tema das mudanças climáticas, porque desconhecem modo mais evidente de fazê-lo. Uma fortuna, como estamos vendo, que pode permanecer despercebida pelas nossas lideranças e geradores de opinião. É tão primário que chega a ser ridículo, mas somos - à esquerda e à direita, para frente e para trás - tão "colonizados" que ainda achamos que "o que só tem no Brasil, e não for jaboticaba, não deve ser tão bom assim".