Título: No bom caminho
Autor: Claudio Haddad
Fonte: Valor Econômico, 05/11/2004, Opinião, p. A-13

A dívida líquida do setor público continuou sua trajetória de queda em setembro. No gráfico abaixo, com dados trimestrais, vê-se que a tendência vem se mantendo desde o final do ano passado. Comportamento semelhante tem tido o seu componente externo. A dívida externa líquida do setor público, que já alcançou 17% do PIB em 2002, desde junho 2004 se encontra abaixo de 10%, também com tendência de queda. Muito bom e encorajador. A redução do endividamento público é condição necessária, porém não suficiente, para iniciar novo ciclo virtuoso na economia brasileira. Mais importante do que a taxa Selic, que reflete o custo diário das reservas, é a taxa de juros de longo prazo, base para decisões quanto a investimentos e financiamentos para aumento de capacidade instalada. No Brasil, em função dos calotes do passado e da volatilidade da economia, os horizontes se encurtaram, de forma que boa parte dos financiamentos bancários, assim como quase 60% da dívida pública mobiliária, é indexada à taxa Selic, o que representa grave distorção. Tal fato contribui para que a mídia e os analistas se concentrem nas decisões do Copom de aumentar ou não a Selic, que tem, portanto, impacto direto nos custos das dívidas privada e pública. A chave para se sair desta armadilha é a continuada geração de fortes superávits primários para manter e, eventualmente, acelerar a redução da dívida pública. O alto endividamento público prejudica a economia de duas formas. Primeiro, aumenta o risco percebido pelos investidores e empresas quanto à estabilidade de sua dinâmica e, em conseqüência, quanto à possibilidade de mudanças de regras que impliquem perdas aos seus detentores. Crises econômicas podem ser criadas internamente ou podem ser conseqüência de eventos externos, muitas vezes imprevisíveis. Em qualquer caso, o efeito é pressionar o balanço de pagamentos, desvalorizando o câmbio, aumentando os prêmios de risco e pressionando a inflação.

Esses efeitos pressionam a taxa de juros doméstica que, em conjunto com o efeito do câmbio sobre a parcela indexada ao dólar, expande a dívida pública, o que aumenta o risco percebido, gerando um ciclo vicioso potencialmente explosivo, que pode levar, em um extremo, ao calote. A probabilidade de ocorrência do evento está diretamente relacionada ao tamanho relativo da dívida. A redução do endividamento público é essencial para diminuir a vulnerabilidade da economia a crises, cortar o prêmio de risco-país e baixar a taxa de juros relevante para decisões de longo prazo. Em segundo lugar, não haverá um mercado amplo e eficiente para financiamentos ao setor privado enquanto o governo monopolizar boa parte da poupança nacional para a rolagem e o serviço de sua dívida. A uma taxa média de juro real sobre a dívida líquida de 9% ao ano, o governo absorve quase 5% do PIB para servi-la. Além disso, para facilitar a colocação de seus papéis, o governo tradicionalmente tem criado privilégios para os mesmos, através de regulação, como liquidez em sua recompra, condições de prazo e taxas mais favoráveis, demandas cativas através de compulsórios ou fundos de poupança, cerceamento a novas modalidades de operações financeiras e assim por diante. O efeito composto disso tudo é o de dificultar e encarecer o financiamento ao setor privado, reduzindo investimento e limitando o crescimento econômico.

A redução do endividamento público é essencial para diminuir o risco-país e baixar a taxa de juros relevante para decisões de longo prazo

Logo, é essencial manter elevados superávits primários para dar continuidade à trajetória decrescente da dívida. Seria recomendável que o Tesouro e o BC aproveitassem o bom momento cambial para continuar a retirar dívida em dólares, tanto interna quanto externa. Desta forma, seria neutralizado um componente que potencializa incertezas em horas de crise, o que contribuiria para a blindagem do país, baixando o prêmio de risco. À medida que o endividamento fosse reduzido, seria importante iniciar uma discussão sobre o que poderia ser feito para diminuir a possibilidade de o país ter uma recaída e a dívida pública, através de novos desequilíbrios fiscais, voltar a aumentar. Nesse campo não há garantias, pois tudo o que é criado pode vir a ser revertido. Entretanto, tanto a experiência brasileira com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) quanto, na Europa, a regra estabelecida para a entrada dos países no bloco do euro, levam a crer que parâmetros estabelecidos em lei podem ajudar, tornando-se importantes âncoras. O efeito positivo da LRF ao forçar o saneamento das contas de Estados e municípios no Brasil tem sido significativo. No caso do euro, os exemplos de ajustamento fiscal feitos por países como Irlanda e Itália para se incorporar ao bloco foram notáveis. Ou seja, trata-se de discutir um projeto que amplie a LRF, impondo também limites ao endividamento do governo federal e, consequentemente, aos seus fluxos de receita e despesa, com exceções óbvias em casos de guerra ou calamidade, mas com regras claras de retorno ao limite imposto após o período de crise. O exame das regras estabelecidas aos países da União Monetária Européia e adaptadas ao caso brasileiro poderia ser um bom começo. Nenhuma blindagem é impenetrável, mas um conjunto delas torna o país bem menos vulnerável a crises, o que é condição essencial para o crescimento sustentável. Talvez seja cedo para iniciarmos uma discussão nesse sentido, pois os parâmetros econômicos, embora evoluindo bem, ainda não garantem que a estabilidade esteja assegurada. A prioridade é continuarmos, por algum tempo, no bom caminho.