Título: Tateando dados, à procura de um horizonte
Autor: Alex Ribeiro
Fonte: Valor Econômico, 05/11/2004, EU &, p. 4

O rápido preenchimento da capacidade ociosa da economia é um dos fatores de risco apontados pelo Banco Central para justificar o ciclo atual de aperto na política monetária. Mas a exata capacidade ociosa da economia ainda é, para o BC, uma desconhecida. Sua equipe ténica tem concentrado esforços, desde 1999, na tentativa de fazer esse cálculo, mas, até agora, o máximo que conseguiu foi acumular uma coleção de metodologias diferentes - nenhuma que aponte com segurança quanto o país pode crescer daqui por diante sem provocar aceleração da inflação. Está aí implícita, portanto, a questão, extremamente controversa, da medição e uso, como referência de política econômica, do chamado produto interno bruto (PIB) potencial, aquele a que se poderia supostamente chegar sem que houvesse descasamento entre oferta e demanda e, por consequência, elevação de preços. "Os modelos econométricos são como uma lanterna que ajuda a atravessar uma sala escura", afirma o economista Roberto Padovani, da Tendências Consultoria. "O problema é que, no Brasil, essa lanterna tem luz um pouco mais fraca." O BC não divulga em quanto, exatamente, calcula o crescimento não inflacionário da economia. Econometristas do mercado financeiro que procuram reproduzir os modelos do BC chegam a percentuais entre 3% e 4%. Ninguém, entretanto, acredita na exatidão de números como esses. "O importante não são os números em si, mas a tendência que apontam", afirma o chefe do Departamento de Pesquisa Econômica do BC, Marcelo Kfoury. A avaliação da capacidade ociosa da economia depende de dois fatores. De um lado, o BC precisa estimar de quanto será o crescimento da economia nos próximos trimestres. Em janeiro passado, a autoridade monetária demonstrou certa competência para apontar a evolução futura da economia, ao antever uma retomada no nível de atividade em que poucos economistas do setor privado acreditavam. Mas não foi capaz de medir quão forte seria essa retomada - e, de fato, a expansão chegou a mais de 6% em termos anualizados, saindo-se mais intensa do que a esperada pelo próprio BC. A economia voltou a se desacelerar, mas num ritmo menos intenso do que o desejado pela autoridade monetária. Estaria o BC, de novo, subestimando esse movimento na economia? O outro fator que determina a capacidade ociosa da economia é o PIB potencial. Não é um cálculo fácil, por que se trata de uma variável não observável - ou seja, não é um número que possa ser medido por um inventário sistemático, como faz todos os trimestres o IBGE em relação ao PIB corrente. A intuição econômica por trás do PIB potencial é a existência de taxas mínimas de desemprego e de uso da capacidade que, se ultrapassadas, estimulam a inflação. A diferença entre o PIB observado e o potencial é o que os economistas chamam de hiato do produto - que pode ser entendido como uma medida da capacidade ociosa da economia. O BC, hoje, calcula esse hiato por meio de quatro metodologias diferentes (embora apenas uma seja usada em seus modelos de projeção de inflação). Duas indicam que, já no primeiro semestre, o crescimento fez estourar a capacidade ociosa. "Se o BC fosse levar essas metodologias ao pé da letra, deveria ter iniciado o aperto monetário muito antes", afirma Bráulio Borges, responsável pelos modelos econométricos na LCA Consultores. Entretanto, de acordo com as outras duas metodologias, sobrava alguma capacidade ociosa - ainda que estivesse sendo rapidamente preenchida. Em qual metodologia creditar? Talvez em nenhuma, isoladamente. Uma das metodologias usadas pelo BC que apontam superação da capacidade ociosa é conhecida, entre os economistas, como "filtro HP". "Os analistas do mercado adoram usar esse método. Basta apertar um botão e o computador faz tudo", afirma Borges. "Mas ele provoca sérias distorções quando usado para apontar o hiato do produto nos últimos dois ou três trimestres." As distorções ocorrem especialmente quando há mudanças cíclicas na economia - ou seja, num momento como o atual, quando o país saiu de uma recessão e entrou em crescimento. Foto: Arquivo/A Tarde

PIB potencial: "O importante não são os números em si, mas a tendência que apontam", afirma o chefe do Departamento de Pesquisa Econômica do BC, Marcelo Kfoury. Em outro método de cálculo, trabalha-se com a chamada tendência linear. É um modo um tanto mecânico de calcular o crescimento potencial. Basicamente, verifica-se o que aconteceu com o hiato no passado e, a partir desse dado, tenta-se traçar a evolução do hiato do produto. Se o mundo econômico tivesse sempre um comportamento linear - e nunca mudasse de direção - seria perfeito. A principal deficiência dessa metodologia é justamente a incapacidade de capturar as tão freqüentes mudanças estruturais na economia. Entre elas, a queda dos investimentos que ocorreu em meados de 2001, com a crise de energia elétrica, e a sua significativa retomada em fins de 2003. Atualmente, a metodologia oficial de cálculo do hiato do produto é a da chamada função produção. Colocam-se em uma equação todos os componentes relacionados à capacidade produtiva: estoque de capital investido em máquinas e instalações, o total de mão-de-obra na economia e a produtividade desses fatores. "É um método mais econômico", diz Sérgio Vale, que desenvolve modelos econométricos na MB Associados. "Captura as mudanças na tendência do hiato do produto." Mas aqui também há limitações: faltam dados estatísticos confiáveis. Uma das matérias-primas desse método de estimativa é o estoque de capital. É algo intuitivo: quanto mais capital investido sob a forma de máquinas e instalações, mais a economia pode crescer. Mas não há no Brasil um levantamento sistemático do estoque de capital. Outro dado problemático é o desemprego. Um dos pressupostos desse modelo é que existe uma taxa mínima de desemprego - abaixo da qual a inflação se acelera. "Os dados estatísticos têm uma quebra em 2002, quando o IBGE adotou nova metodologia", afirma Borges, da LCA. Recentemente, o BC começou a trabalhar com uma quarta metodologia, que combina a função produção com o filtro HP. Ela também indica que a capacidade ociosa da economia já foi superada no primeiro semestre, mas o BC ainda não a considera madura o suficiente para substituir a função produção tradicional. Essa abordagem traz avanços, mas não deixa de incorporar algumas das fragilidades das demais. Os analistas econômicos são unânimes em afirmar que essa profusão de metodologias não ocorre por falta de competência técnica dos economistas do BC. O núcleo de pesquisas de metas inflacionárias do BC é formado por onze economistas, e tem sido referência em encontros acadêmicos de economia e econometria. Claramente, portanto, o problema não é com os economistas que fazem os cálculos, mas com a insuficiência de metodologias, ou, se não, dos dados estatísticos adequados para fazê-las funcionar.