Título: Após 27 meses, inflação volta a dois dígitos na Argentina
Autor: Paulo Braga
Fonte: Valor Econômico, 06/10/2005, Internacional, p. A13

Preços IPC acumulado em doze meses chega a 10,3% e preocupa o governo

No início do ano, cada almoço dado todos os dias a 700 crianças no refeitório comunitário Sol Naciente custava 1,20 peso. Hoje, a entidade diz gastar 1,80 com a mesma refeição. "A carne subiu muito, apesar de o governo dizer que está controlando o preço, e o custo das frutas e verduras foi para as nuvens", disse Lidia Hernández, que dirige a instituição assistencial do bairro de Bajo Flores, zona pobre na periferia de Buenos Aires. A alta dos alimentos é o dado econômico que mais preocupa Hernández. Preocupa também o governo, especialmente às vésperas da eleição legislativa. A estratégia de pressionar supermercados e ameaçar exportadores com aumentos de impostos não está sendo suficiente para deter a inflação.

Em setembro, o índice de preços ao consumidor subiu 1,2%. No ano, a inflação já acumula alta de 8,9%; nos últimos 12 meses, de 10,3%. É a primeira vez desde junho de 2003 que a inflação atinge dois dígitos, sendo que pode superar 11% no ano. Após a desvalorização, em janeiro de 2002, o país teve um surto inflacionário que levou a taxa anual a 41%. Ao final de 2003, o índice já estava controlado em 3,7%. Embora os dados oficiais não confirmem o aumento de 50% no custo das refeições percebido por Hernández, as estatísticas lhe dão alguma razão. A categoria alimentos e bebidas subiu no mês passado 2,5%, mais do que o dobro do índice gera. No último ano, o aumento também é maior: 12,2%. E justamente itens com os quais o Sol Naciente tenta reforçar a dieta das crianças tiveram as altas mais acentuados: 12,8% em carnes, 14,4% em lácteos e 39,1% em verduras. "Esses são produtos que as pessoas não doam e que temos de comprar", explicou Hernández. A reação do governo à elevação dos preços tem sido culpar o empresariado. A questão é particularmente sensível porque no próximo dia 23 os argentinos votam para renovar dois terços da Câmara e um terço do Senado, e o presidente Néstor Kirchner tenta ampliar sua base de apoio no Congresso. "Há grupos econômicos que querem nos desestabilizar", disse o presidente num ato de campanha na localidade de Junín, província de Buenos Aires. Ele falou em "supermercados cartelizados que querem ir contra o bolso dos argentinos" e disse que "vão ter de passar por cima de mim" para que os preços continuem avançando. Além da pressão, o governo tenta conter a alta dos alimentos com medidas para ampliar a oferta no mercado interno. Em julho, subiu o imposto de exportação de produtos lácteos, e há a ameaça de elevar também o de carne. Com isso, as autoridades conseguiram um compromisso dos produtores de congelar os preços até dezembro. Mas parece não estar dando certo. "A política de aumentar a competitividade com o peso desvalorizado permitiu a abertura de mercados externos a produtos agroindustriais, mas ao mesmo tempo fez com que os preços internacionais se tornassem uma referência para o mercado interno", explicou Mariano Lamothe, economista do Centro de Estudos Bonaerense. Isso contribui para que as altas se concentrem nos alimentos. Além da pressão externa, a política monetária argentina ajuda a alimentar a inflação. Para evitar que o peso valorize e prejudique as exportações, o Banco Central vem comprando dólares e injetando dinheiro na economia. A moeda tem oscilado em torno de 2,90 pesos. O coquetel inflacionário se completa com uma demanda interna crescente, impulsionada pela forte expansão econômica - este ano, o PIB deve crescer até 8%. E ao mesmo tempo em que é um dos elementos do "modelo produtivo" pelo qual o governo pretende gerar mais empregos e impulsionar a industrialização, o aumento dos alimentos torna mais difícil reduzir os índices de pobreza. "Estamos tratando de incorporar a cultura do trabalho à vida das pessoas daqui, mas fica mais difícil quando a alimentação ainda é um problema", disse Hernández. Ela relata a dificuldade de incluir pessoas desnutridas em projetos de trabalho realizados por sua instituição.