Título: O algodão e a implementação da vitória do Brasil na OMC
Autor: Pedro de Camargo Neto
Fonte: Valor Econômico, 06/10/2005, Opinião, p. A14

Sob pressão interna, EUA não cumpriram prazos de redução dos subsídios

A viória obtida na disputa entre Brasil e EUA na questão dos subsídios à produção de algodão, no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC), encontra-se em fase de implementação. Ganhamos. Agora cabe aos EUA respeitar o veredicto. A arbitragem do sistema de solução de controvérsias da OMC, em duas instâncias, deu ampla vitória ao Brasil. Decidiu a favor em quase a totalidade dos pleitos apresentados. A decisão da OMC dividiu em duas etapas a obrigação dos EUA de alterar sua política de subsídio ao algodão. Na primeira etapa, com data fixada em 1º de julho de 2005, foi determinado que a política de subsídios ao programa de exportação, conhecido como Step 2 e considerado um subsídio ilegal, fosse eliminada. O painel de arbitragem, já em sua primeira decisão, em 2004, fixou esta data considerando a gravidade da ilegalidade apresentada. Na apelação, os árbitros definiram a rápida eliminação deste programa, bem como a do componente de subsídio existente nos créditos à exportação. Na segunda etapa, que dentro das normas da OMC deveria ocorrer seis meses após sua determinação - o que aconteceu no dia 21 de setembro de 2005 -, determinou que quase toda a política de apoio à produção de algodão fosse alterada, de maneira a cessarem os danos que vêm sendo causados ao Brasil, conforme ficou amplamente caracterizado no processo. Esta etapa, mais complexa que a primeira, implica que os EUA reduzam os montantes despendidos em subsídios em diversas políticas de apoio à produção de algodão. A arbitragem, porém, não fixou valores ou percentuais de redução, ficando a ser acordada entre as partes a interpretação do que representaria cessarem os danos ao Brasil. E agora, Brasil? Ganhamos, porém é preciso que as mudanças realmente ocorram, para que a vitória seja mais do que só política, contribuindo para o desenvolvimento nacional. Primeiro de julho chegou sem que o Brasil pressionasse com determinação para que as mudanças determinadas pela OMC ocorressem na data definida há mais de um ano antes. O Brasil se reuniu com os EUA e acabou aceitando um acordo, onde o Poder Executivo americano enviaria ao Congresso proposta de emenda à legislação agrícola retirando o programa Step 2, com a promessa de obter sua aprovação até o final do ano. A aprovação da emenda continua tramitando em Washington e é objeto de pressão do organizado interesse do setor algodoeiro local. No Brasil, o setor produtivo sofre seríssima crise, com reflexos diretos na redução da área plantada para a próxima safra. A implementação da vitória em 1º de julho certamente teria minorado os prejuízos dos produtores brasileiros, pois se estima que a eliminação somente do Step 2 deve aumentar os preços em cerca de 10 a 15% no mercado internacional. É preciso destacar que o governo brasileiro se posicionou corretamente na OMC nesta época, garantindo o direito de vir a utilizar o instrumento da retaliação comercial caso os EUA não cumpram o determinado pela arbitragem. Avocou inclusive o direito de retaliar em questões protegidas pelo acordo de propriedade intelectual e de serviços de maneira corajosa e pioneira. Agora, a data de 21 de setembro chegou sem que a primeira etapa do determinado tenha sido cumprida pelos EUA. Embora tramite no Congresso, a legislação que elimina o Step 2 não foi ainda aprovada.

Se EUA tivessem honrado a primeira etapa definida pela OMC, os preços no mercado internacional teriam subido em até 15%

Cumprir a segunda etapa é algo extremamente mais complexo. A arbitragem não explicitou o que seria eliminar os danos causados ao Brasil. Poderão os EUA continuar a subsidiar seus produtores com instrumentos de política agrícola que distorcem o comércio? Poderão os EUA continuar a exportar algodão, embora seus produtores recebam subsídios que comprovadamente distorcem o comércio? Terá o produtor brasileiro que continuar concorrendo no mercado internacional com algodão americano, onde parte do custo de produção foi arcado pelo Tesouro de Washington? O que é causar dano à economia nacional? Que nível de subsídios causa prejuízo à cotonicultura brasileira? Quantos empregos podem ser suprimidos porque os EUA continuam a subsidiar seus produtores? Qual o nível de preço que o produtor brasileiro é obrigado a suportar, fruto de distorções por subsídios? Que parcela do mercado internacional de algodão é reservada ao Congresso de Washington, não ao produtor, com a aprovação de recursos orçamentários ilimitados para subsídios? Essas questões também estão sendo discutidas na Rodada Doha de negociações da OMC, que tem a pretensão de ser chamada de rodada para o desenvolvimento. Qualquer acordo realizado agora pelo Brasil tem implicações diretas na negociação em andamento. O contencioso do algodão representa um marco no comércio mundial. Um país em desenvolvimento, utilizando o sistema multilateral, venceu um país desenvolvido em uma questão agrícola de profundo alcance. A implementação da vitória terá reflexos diretos na nova legislação agrícola americana que entra em discussão no ano que vem. É preciso reconhecer a complexidade da questão e agir com cautela, porém com determinação, fruto da compreensão da importância para os países em desenvolvimento da sua correta implementação. A negociação da redução dos subsídios de apoio interno da Rodada Doha é confusa e complexa. A atual negociação está estruturada de maneira a definir limites e regras para os diversos tipos de subsídios, onde uns são considerados piores do que outros. Os subsídios classificados como da caixa verdes, que em princípio deveriam se limitar ao apoio à pesquisa agronômica e extensão rural, não terão limites de recursos. Existe uma ampla tentativa de enquadrar como verdes inúmeras políticas claramente não deste tipo. O contencioso do algodão contestou e venceu a posição de que a política chamada de pagamentos diretos seria verde. A União Européia preocupa-se hoje em não ter regras que torne sua política de pagamentos anuais como não-verdes. A tentativa dos EUA de enquadrar sua política chamada de pagamentos contra-cíclicos dentro de novas regras da caixa azul ficou evidenciada pelo resultado do contencioso. A política conhecida como pagamento de deficiências de preço ficou caracterizada como altamente distorciva ao comércio e com reflexos claros na exportação. Qualquer acordo no contencioso do algodão tem reflexos claros na Rodada Doha. O correto seria vermos os EUA cumprir seu veredicto, avaliado pela OMC dentro das regras do acordo da Rodada Uruguai, para na seqüência negociarmos os novos avanços da Rodada Doha. Cumpre ao governo brasileiro manter a determinação que levou os produtores a iniciarem a ação.