Título: Adiamento das obras de transposição é bem-vindo
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Fonte: Valor Econômico, 07/10/2005, Opinião, p. A10

O projeto de transposição das águas do rio São Francisco esbarra em polêmicas desde o Segundo Império. Nunca andou por conta disso. Andaria no governo Lula porque o presidente o assumiu como a grande obra de seu governo. Apesar da afirmação do ministro da Integração Regional, Ciro Gomes, de que a proposta foi amplamente discutida antes de chegar à fase de execução, que se iniciaria em breve, o fato é que o governo passou como um trator sobre os opositores da idéia. Prova disso é que simplesmente ignorou uma decisão do Tribunal Regional de Brasília que, em dezembro, concedeu uma liminar que embargou o início das obras. Antes de começar as negociações com o bispo de Barras, dom Luiz Cappio, que manteve por doze dias uma greve de fome contra o projeto, não havia indícios de que o governo pudesse recuar de sua obra grandiosa, já apelidada por especialistas em meio ambiente de a "Transamazônica" de Lula - uma referência à rodovia construída no período militar que ligava nada a lugar nenhum, consumiu recursos imensos e foi comida pelo desuso depois de alguns anos. Com todas a críticas que se possa ter ao gesto do bispo, que em alguns momentos configurou-se como uma chantagem e exigência pessoal a um governo eleito democraticamente, o fato é que o adiamento do início da obra é bem-vindo. É preciso que a iniciativa retome novamente o seu status de projeto polêmico, para que se analise os argumentos das partes contrárias e, sobretudo, se despolitize o debate - sob pena de o assunto continuar, eternamente, com o carimbo de projeto político-eleitoral. Desde 1983, quando a discussão foi recolocada na pauta nacional pelo último ministro do Interior da ditadura militar, Mário Andreazza, a idéia é submetida a tantas injunções políticas que acaba de novo na gaveta. Andreazza trocou o projeto, que beneficiaria o Ceará e o Rio Grande do Norte, por uma candidatura à presidência da República pelo Colégio Eleitoral - foi derrotado na convenção do PDS, seu partido, por Paulo Maluf. No governo Sarney, o ministro Aluízio Alves, um político do Rio Grande do Norte, trouxe-o de novo à ribalta. No governo FHC, os ministros paraibanos Cícero Lucena e Fernando Catão contrabandearam nele duas transposições para a Paraíba. O ministro seguinte, Fernando Bezerra (PMDB-RN) manteve a Paraíba em seu projeto e compensou Minas Gerais, incluindo a construção de barragens para regularizar os afluentes do rio. Agora, o governo de Pernambuco negociou enormes vantagens ao seu Estado, com o argumento de que não cederia território para ser uma simples passagem das águas do rio para outros Estados. Fazer concessões políticas em um projeto que tem o poder de mudar a geografia de toda uma região é uma temeridade. É preciso que o país, no mínimo, tenha segurança para apoiar uma proposta dessas. Até agora, os únicos dados seguros são os que mostram que o rio São Francisco, com o atual nível de degradação ambiental, está fadado a não servir nem no atual leito, nem em um projeto de transposição, às populações daquela região carente de água. O próprio D. Luiz Cappio, especialista no rio, tem um estudo, citado ontem pelo jornal "O Estado de S. Paulo", onde alerta para o fato de que os desmatamentos - que hoje ocorrem à velocidade de 360 mil hectares por ano - são a maior agressão à vida do rio. A destruição das matas ciliares, que o preveniriam do entupimento, também é preocupante. O rio está assoreado pela ocupação irracional de suas margens e os seus afluentes recebem dejetos industriais, rejeitos de mineração, agrotóxicos, esgotos e lixos das cidades. Cappio argumenta que apenas é possível discutir a transposição depois da revitalização do Velho Chico. Em que pesem as críticas ao bispo, que ontem encerrou a sua greve de fome, é forçoso reconhecer que ele conseguiu dar visibilidade a uma reivindicação regional, amparada por movimentos sociais, que o governo petista, como os demais, não levou em consideração. Prova disso é que uma emenda constitucional aprovada em 2001 pelo Senado, de autoria do senador Carlos Valadares (PSB-SE), que destina parcela da arrecadação federal à recuperação do rio, foi ressuscitada na Câmara na semana passada e ganhou um relatório favorável a toque de caixa, com promessa de apoio do presidente Lula.