Título: Deflação oportunística
Autor: Antonio Delfim Netto
Fonte: Valor Econômico, 11/10/2005, Brasil, p. A2

O "contrato a termo de dólar" é uma operação direta entre bancos para reduzir os custos das operações de hedge contra as oscilações cambiais. Foi autorizado a funcionar no Brasil no final de 1999, quando Armínio Fraga estava organizando o sistema de taxas de câmbio flutuante. Ele pode ser registrado na BM&F ou existir como operação de balcão. O contrato projeta o valor do dólar no dia do vencimento, que é o valor da liquidação. O montante de tais contratos é sempre difícil de calcular, mas sua cotação ajuda a estabelecer uma "expectativa" do comportamento do juro futuro, informação muito importante para a política monetária. O "contrato a termo" pode ser liquidado com a entrada física do dólar na data da liquidação (chamado de "Deliverable Forward"), ou com pequena movimentação física (chamado de "Non Deliverable Forward"). O contrato funciona em muitos países emergentes, cumprindo o seu papel: fornecedor de "hedge" e fator coadjuvante para determinar a "expectativa" do comportamento do juro futuro. No Brasil, devido à imensa diferença entre os juros reais internos (arbitrários) e externos (determinados pelo "mercado"), o seu efeito foi produzir uma enorme sobrevalorização do câmbio. Há meses o Banco Central transformou o real na "commodity" de maior retorno de 2005 (como prova a imensa demanda de reais contra a oferta de dólares) e produziu uma supervalorização do real que, oportunisticamente, está reduzindo a taxa de inflação, como se procura mostrar abaixo. O gráfico mostra a taxa de variação mensal do câmbio nominal e do IPA-DI, de janeiro de 1999 a julho de 2005.

Não é preciso muita sofisticação para verificar a alta correlação simultânea entre as duas taxas. É claro que "correlação" não é a mesma coisa que "causalidade". É muito improvável, entretanto, que alguém defenda que são as variações do IPA-DI que influenciam as variações do câmbio... É improvável, também, que a influência se esgote na taxa de câmbio contemporânea, pois as taxas de câmbio dos meses anteriores, por exemplo, ajudam o agente formador de preço a confirmar ou corrigir a sua "perspectiva". Se existir demanda, o preço "projetado" confirma-se no mercado. Se não existir, as "tabelas de preço" (que ainda condicionam o IPA-DI) serão, obviamente, um indicador "viezado" dos preços. É possível melhorar bastante a estimativa do IPA-DI do mês T (agosto/04), por exemplo, utilizando mais algumas "informações": o próprio IPA-DI do mês T-1 (julho/04) e as diferenças de taxas de câmbio dos três meses anteriores.

Câmbio atual é resultado de política desastrada

O gráfico abaixo revela, de forma impressionista (isto é, sem pretensão "científica"), a aproximação entre o IPA-DI do mês T, calculado pelo IBGE, e o IPA-DI estimado pela equação resultante, utilizando as diferenças dos últimos três meses da taxa de câmbio. O exame dos dados mostra que praticamente 4/5 de toda a variação do IPA-DI com relação a sua média, no período fevereiro/99 - julho/05 é explicada pelas variáveis anteriores. Por outro lado, é certo que o IPA-DI em T-1 é muito influenciado pela taxa de câmbio em T-2 e T-3. De fato, apenas as variações das taxas de câmbio dos últimos cinco meses "explicam" cerca de 70% da variação do IPA-DI. A conclusão inexorável dessa análise estatística pedestre é que a sobrevalorização cambial produzida pela, como diria FHC, "escorchante" taxa de juro real de 14% ao ano em 30 dias, será responsável pelo ganho oportunístico de 1% da taxa de inflação anual que estamos vivendo, à custa de uma provável redução de 1,5% da taxa de crescimento do PIB. Em condições normais, o real deveria mesmo valorizar-se diante do dólar americano. Mas o excesso de valorização, isto é, a supervalorização que o transformou na mais preciosa "commodity" de 2005, é obra de uma política monetária desastrada, imposta ao país pela falta de uma reestruturação completa do sistema monetário e financeiro desde o Plano Real. Essa reestruturação jamais acontecerá sem a "normalização" da curva de juros interna (como ocorre na externa), como conseqüência da liquidação dos restos de "correção monetária" que nos perseguem e de um verdadeiro "choque fiscal", capaz de colocar numa tendência monotonicamente decrescente a relação dívida/PIB.