Título: O PT e o direito de hereditariedade política
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 11/10/2005, Opinião, p. A12

A política brasileira, constituída à imagem e semelhança de uma sociedade patriarcal, incorporou como regra um estranho direito divino à hereditariedade. Isso é comum nos pequenos municípios, onde uma mesma família domina a política local e torna-se proprietária do aparelho partidário que lhe dá guarida. Quando o seu domínio é questionado, toma de assalto outro partido. Essa parcela de poder municipal pode alimentar, com a mesma lógica, um partido estadual: nada impede que os grupos locais dominados por familiares se aliem a grupos que dominam o Estado. Aliás, essas famílias dependem de outras instâncias de poder, estadual e federal, para, como depositárias do dinheiro público, alimentarem suas clientelas e mantê-las sob seus domínios. Isso não é uma prerrogativa municipal. É uma lógica intrínseca à política brasileira. O getulismo teoricamente insurgiu-se contra os coronéis políticos - e, ao intervir nos municípios e nos Estados, acabou fazendo de seus próprios coronéis novas oligarquias. A Revolução de 1964, que resultou numa ditadura de mais de vinte anos, tinha como uma de suas bandeiras tomar o poder local dessas famílias. A maioria delas acabou migrando para o novo regime e dando a ele sustentação política. O regime democrático reinaugurado em 1985, com a posse de um civil, José Sarney, na Presidência da República, mostrou que nada havia mudado no reino dos oligarcas. Um deles, inclusive, ocupava a Presidência: Sarney consolidou seu poder estadual em 1966, quando foi eleito governador do Maranhão e depôs o oligarca anterior, Vitorino Freire. A família Sarney ainda hoje domina o Estado. Sua filha, Roseana, é senadora; seu filho, Sarney Filho, foi deputado e ministro. Sarney e Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) são considerados os últimos oligarcas à moda antiga. ACM, que se consolidou na política destronando o anterior, Juraci Magalhães, ex-interventor do Estado Novo, é ainda o dono incontestável da política baiana. Preparou seu filho Luís Eduardo como seu sucessor, mas ele morreu jovem. Agora investe no deputado federal Antonio Carlos Magalhães Neto. Por preconceito, quando se fala em famílias políticas tradicionais aponta-se imediatamente para o Nordeste, berço da sociedade patriarcal. E para os partidos conservadores. São os Maia e os Alves no Rio Grande do Norte, os Mello em Alagoas e os Bezerra no Ceará. Mas o direito hereditário na política está longe de ficar restrito a isso. Após a redemocratização, Teotônio Vilela Filho, na esteira da luta pela redemocratização empunhada pelo pai falecido, começou uma sólida carreira política. Jutahy Magalhães Jr. (BA), neto de Juraci e filho de Jutahy, como Teotônio abrigou-se no PSDB. As eleições de 2002, e principalmente as CPIs, jogaram os holofotes sobre o neto de ACM e também sobre o filho de César Maia, prefeito do Rio, o deputado Rodrigo Maia (PFL). Miguel Arraes voltou para o Brasil depois da anistia, ampliou uma liderança já sólida e se deu ao luxo de fazer o neto, Eduardo Campos (PSB-PE), seu sucessor político. O PT, que durante pelo menos uma década discutiu a conveniência de se "institucionalizar", inaugura a sua entrada na política hereditária. Criado como um partido de militância, a mobilidade interna, isto é, a possibilidade de acesso a cargos de direção e de disputa a cargos eletivos, dependia da representatividade do grupo interno ao qual o candidato a político pertencia e à sua representatividade junto a algum setor social. O deputado José Dirceu (SP), um dos maiores responsáveis pela crise ética e de identidade que se encontra o PT hoje, introduziu a família como vetor de acesso à política. As investigações de que o filho de Dirceu, José Carlos Becker de Oliveira e Silva - ou Zeca Dirceu ou Zeca do PT -, hoje prefeito de Cruzeiro do Sul, teria sido beneficiado pela Casa Civil quando o pai era ministro dão mais um elemento de convicção ao eleitor de que a legenda da estrela é apenas mais uma no quadro partidário. Pré-candidato a prefeito, Zeca, que em 2002 não conseguiu se eleger deputado federal, teria intermediado verbas para a sua cidade de forma irregular. O dinheiro para obras certamente foi fundamental para sua vitória nas eleições de 2004. O PT confirmou a regra de que o poder federal é uma peça importantíssima na manutenção dos poderes locais, pelos recursos que pode liberar para favorecer políticos; e de que, internamente, o sobrenome pode ser tão ou mais importante do que a militância para se galgar posições.