Título: Sinais de dominância fiscal na economia brasileira
Autor: Bernardo Guimarães e Carlos Eduardo S. Gonçalves
Fonte: Valor Econômico, 11/10/2005, Opinião, p. A12

Surpresas nos juros têm influência negativa no câmbio

Há mais de uma década, o Brasil tem consistentemente figurado entre os países com as maiores taxas de juros reais do mundo. Migramos para um regime de flutuação cambial em 1999; vieram a seguir a Lei de Responsabilidade Fiscal e o sistema de metas de inflação, duas importantes inovações institucionais; passamos por uma transição política histórica sem rompimento de contratos; reduzimos nossa razão dívida externa/exportações de 4,5 para 1,5 e, em que pese todas estas melhoras, seguimos com juros muito altos. Para se ter uma noção de magnitudes, descontando-se da taxa nominal de mercado as expectativas de inflação dos agentes privados, chegamos a um juro real médio, para o período pós-flutuação, na casa dos 10% ao ano. Mais recentemente, no bojo do último ciclo contracionista implementado pelo Banco Central, temos convivido com juros reais na casa dos 14% ao ano. Economistas acadêmicos e formuladores de política concordam que, para uma economia que almeja crescer a taxas mais rápidas por longos períodos de tempo, o controle inflacionário é aspecto primordial. No entanto, menos consensual e tema de acalorados debates recentes é a resposta para outro questionamento: para manter a inflação sobre controle, são necessários juros reais nos patamares que hoje presenciamos? De um lado do embate, um grupo de economistas afirma que os altos juros reais decorrem principalmente da desconfiança dos agentes econômicos na condução da política monetária, desconfiança esta gerada pela história de inflação alta e calotes. Para manter a inflação sob controle, o Banco Central precisa continuamente revelar à sociedade - via determinação da taxa básica de juro - uma elevada aversão inflacionária. Esta "dureza" no trato com a inflação reduziria as expectativas de inflação e, conseqüentemente, a taxa de câmbio nominal se apreciaria. Além disto, segue o argumento, um juro mais alto atrairia maior fluxo de capitais externos, valorizando a moeda nacional por arbitragem financeira, e trazendo a reboque a inflação para patamares ainda mais baixos. Por fim, teoricamente (não acreditamos que este canal de transmissão seja quantitativamente relevante no Brasil devido ao baixíssimo grau de intermediação financeira. A experiência empírica revela que o canal do câmbio é o mais importante no caso brasileiro), juros altos deprimem a atividade econômica diretamente e, por conseguinte, a demanda por importações (que é função direta do ritmo da atividade doméstica). Como resultado, teríamos, respectivamente, inflação mais baixa e câmbio mais valorizado. Do outro lado do debate, no qual figuram economistas de renome como José Scheinkman da Universidade de Princeton e Olivier Blanchard do MIT, encontram-se os defensores da tese de dominância fiscal. A lógica do argumento é simples: como cerca de metade da dívida pública brasileira encontra-se indexada à taxa Selic, toda elevação de juro básico leva a um crescimento não desprezível do endividamento público. Como conseqüência, um aperto monetário excessivo eleva o risco de default e, via equação de arbitragem financeira, causa uma depreciação da moeda nacional. Também as expectativas de inflação cresceriam após o aperto monetário, por conta da suspeita de que um endividamento muito alto poderá, ao menos em parte, ser monetizado futuramente. Uma expectativa de inflação mais alta desembocaria em depreciação da taxa de câmbio nominal. Em resumo, prevalecendo os efeitos, digamos, tradicionais, juros mais altos levam a câmbio mais apreciado e inflação mais baixa, enquanto que prevalecendo a tese de dominância fiscal, juros mais altos implicam em câmbio mais desvalorizado. Isto posto, a pergunta crucial é: na margem, qual dos efeitos tem prevalecido no caso da economia brasileira?

Em cenário de pequenas variações da taxa Selic, apertos adicionais não contribuem para a apreciação cambial

Dado o patamar corrente da taxa de câmbio, muitos se apressariam em afirmar categoricamente que o primeiro dos efeitos acima mencionados tem prevalecido no Brasil. De fato, o alto nível das taxas de juros deve ter mesmo colaborado para a valorização do real. No entanto, para analisar a adequação da política vigente, é de suma importância entender a resposta da taxa de câmbio a pequenas variações nos juros. Se estas variações - decorrentes das decisões mensais do Copom - não produzem os efeitos desejados sobre câmbio e inflação, temos um sinal de que os juros estão altos demais e devem ser reduzidos. O problema é que estimar o impacto da política monetária na taxa de câmbio não é tarefa simples, visto que da mesma maneira que choques nos juros têm impacto sobre o câmbio, choques que incidem sobre a taxa cambial alteram as decisões de política monetária e os juros. Um problema clássico que os economistas apelidam de viés de endogeneidade. Além disso, outras variáveis (como o cenário externo, por exemplo) afetam ambos, juros e câmbio. Em resumo, a simples observação da correlação entre as variáveis não nos ajuda a responder a questão colocada. Em artigo acadêmico recente ("Monetary policy and the exchange rate in Brazil", working paper, http://personal.lse.ac.uk/guimarae), utilizamos uma técnica estatística desenvolvida pelo economista Roberto Rigobon, do MIT, capaz de identificar os impactos de decisões de política monetária sobre a taxa de câmbio. Usando dados de janeiro de 2000 até agosto de 2005 de contratos de juros futuros e preço do dólar, nos perguntamos: qual o efeito sobre a taxa de câmbio de mudanças na taxa de juros? De forma interessante, nossos resultados indicam que quando o Banco Central aperta a política monetária mais do que o mercado estava prevendo, a taxa de câmbio tende a se depreciar, contrariando, portanto, a lógica convencional de "sobe juros, câmbio aprecia, inflação declina". A influência negativa das surpresas nas taxas de juros no câmbio corrobora a tese de dominância fiscal na economia brasileira. A esta altura, vale uma observação importante: dado que nosso trabalho é realizado com base em pequenas oscilações de juros e câmbio nas vizinhanças da reunião do Copom, seria incorreto extrapolar suas conclusões para grandes mudanças nas taxas de juros. Com efeito, acreditamos que grandes quedas da taxa Selic levariam a uma depreciação de nossa moeda. Apesar disto, nossa análise nos autoriza a afirmar que "na margem", para pequenas variações dos juros, e tendo como base o elevado patamar de juro real vigente desde 2000, apertos adicionais da política monetária não contribuíram para o processo de apreciação cambial e, portanto, via este canal, não colaboraram para a queda da inflação. Assim, não vemos justificativa para a manutenção dos juros em patamares tão altos no Brasil. A eficácia do remédio é, no mínimo, duvidosa, enquanto seus efeitos colaterais danosos sobre o investimento privado e as finanças públicas, mais do que claros.