Título: "Perda de autonomia compromete o futuro da CUT"
Autor: Catherine Vieira e Vera Saavedra Durão
Fonte: Valor Econômico, 11/10/2005, Especial, p. A14

Entrevista Para especialista em sindicalismo, central enfrentará grave crise ao final do governo petista

A chegada do sindicalismo ao poder, com a vitória do Partido dos Trabalhadores (PT) nas eleições de 2002, gerou um dilema para a dinâmica do seu funcionamento. E a recente crise política do PT expôs isso de forma mais contundente. "A CUT vive um dilema atroz, pois virou governo e com isso não participa mais da discussão dos temas, não se manifestou sobre a crise, por exemplo, e perdeu a autonomia para participar da luta sindical", diagnostica o sociólogo Adalberto Cardoso, diretor de ensino do Iuperj, pesquisador associado do Cebrap e um dos maiores especialistas do país em movimento sindical. Para Cardoso, um processo que começou a ocorrer no início dos anos 90, com a desverticalização do modo de produção industrial e a redução de empregos por conta das novas tecnologias, enfraqueceu o poder de barganha dos sindicatos, que ajudaram a derrubar a ditadura com as greves do ABC. O que se vê hoje é que, enquanto o governo vive uma crise política, os sindicatos negociam individualmente bons acordos coletivos. Ao avaliar o governo petista e a crise, Cardoso destaca que a eleição de um sindicalista para presidente da República não foi "engolida" pelas elites habituadas ao poder nos últimos 500 anos. Crítico da oposição que vem sendo feita ao PT, ele diz que há muito preconceito no ar. "É a primeira vez no país que ocorre uma troca efetiva das origens sociais daqueles que estão ocupando o Poder Executivo Federal. E a elite que ocupava esse posto não aceita isso facilmente", diz, em entrevista ao Valor: Valor: Quais as dificuldades que os sindicatos enfrentam hoje para mobilizar suas categorias? Adalberto Cardoso: As dificuldades são de várias ordens. A primeira tem a ver com uma mudança estrutural do capitalismo contemporâneo. O sindicalismo que nós conhecemos, que acabou ali pelos anos 80 na Europa, e nos anos 90 no Brasil, foi assentado, em especial, sobre dois pilares: o emprego industrial e o público. Este último, principalmente, depois de 1945, com a consolidação do estado de bem estar. Em alguns países, o emprego público chegou a 45% da população economicamente ativa. Por outro lado, na Alemanha, metade da força de trabalho chegou a estar empregada na indústria. No Brasil, chegou a ser 26% e nos EUA, quase 40%. Valor: E como isso se refletia na estrutura sindical? Cardoso: O capitalismo era baseado em grandes empresas. Gosto de citar o exemplo da Volkswagen, em São Bernardo, que chegou a ter 37 mil operários no fim dos anos 70. A fábrica símbolo da Volks na Alemanha chegou a ter 60 mil. Era um modo de produzir que tornava os trabalhadores muito homogêneos em sua qualificação, e que tinham interesses semelhantes em suas funções de trabalho e de renda. Era um capitalismo industrial baseado na estabilidade do emprego. Esse sindicalismo consolidou partidos muito fortes na Europa e na América Latina, apoiando governos populistas como o de Getúlio Vargas e Perón. Valor: E em que momento isso começou a mudar? Cardoso: Nos anos 70, com a crise global, mudou a abordagem dos capitalistas em relação à acumulação, houve movimento geral de redefinição da base tecnológica do capitalismo, que se intensificou nos anos 80, na direção de uma coisa que hoje a gente sabe no que deu, mas que na época não estava muito claro. Aí ocorrem basicamente dois grandes movimentos na indústria: a introdução de tecnologias de base internacional, que desempregam, e mudanças organizacionais, que expulsam muita gente do chão de fábrica. Valor: É nesse contexto que entram as grandes centrais sindicais? Cardoso: Não. As centrais sindicais são fruto da estrutura sindical, ou seja, numa estrutura onde se tem o monopólio de representação de uma categoria específica, há incentivos para que esses sindicatos constituam grupos de solidariedade. A central é uma entidade principalmente política. Por lei, ela não pode assinar contratos coletivos. Valor: Quando Lula começou a aparecer como líder sindical essas mudanças estavam em curso... Cardoso: Em 1978, a ditadura ainda estava muito forte, mas havia uma cisão importante no interior da elite dirigente militar. O Geisel tinha acabado de enfrentar uma resistência pesada, quase sofreu um golpe, e isso revelou uma fissura importante no interior do Exército e fortaleceu a abertura. Lula e os sindicalistas do ABC tiveram sensibilidade para perceber o momento. Valor: A politização foi inevitável naquele momento? Cardoso: Lula, em 1978, deu entrevista dizendo que não queria nada com o Estado, com partidos e política. O que ele queria era representar os trabalhadores e lutar por melhores condições de trabalho e melhores salários. Em 1979, porém, já estava se articulando para fundar o PT. Valor: O que resultou dessa entrada dos sindicatos e da oposição de esquerda na grande política? Cardoso: É bom lembrar que, às vésperas dos anos 90, o Lula decidiu participar do jogo político, depois de ter sido candidato ao governo do Estado de São Paulo e deputado constituinte. Até 1989, todo esse movimento de participação do Lula era pura propaganda, era pensado no PT como mecanismo de consolidação do partido no campo das forças políticas. Mas, em 1989, Lula foi jogar o jogo a sério. Com a derrota para o Collor na eleição, a CUT perdeu um elemento central do seu discurso, que era baseado na ilegitimidade dos governos tanto da ditadura quanto do Sarney. Nesse contexto, as greves da década de 90 se despolitizaram, passando a priorizar interesses das categorias. Valor: Como o sr. vê o papel desses sindicalistas hoje no governo Lula? Eles são realmente uma nova elite? Cardoso: A questão é que, pela primeira vez no Brasil, houve uma mudança real de elite governante. Isto já tinha ocorrido em outras instâncias. Mas, no governo federal é a primeira vez que uma nova elite gere os negócios públicos. Quem saiu, depois de estar aí por 500 anos, saiu gritando. Valor: Mas os empresários estão sendo beneficiados pela economia... Cardoso: Eles estão sendo beneficiados, mas preferiam que o PFL estivesse no governo. A questão é que quem está lá não é o representante deles. Junto com a política econômica do PT, que está favorecendo os empresários, vem o PT e seu projeto de poder de 20 anos. Daí a corrupção. Para a capilarização nacional do partido, que precisa de muito dinheiro. Valor: Qual é a composição da elite que está no poder hoje?

É legítimo que os principais beneficiários dos fundos de pensão estejam representados nos seus colegiados"

Cardoso: Uma parte grande dessa nova elite é de sindicalistas. Tem gente de ONGs, dos movimentos sociais, da intelectualidade em todos os ministérios, no segundo e terceiro escalões. Uma parte grande é composta por algumas lideranças importantes que vieram da CUT. Mas muitos não são mais sindicalistas há tempos, como (Ricardo) Berzoini, Jaques Wagner, (Luiz) Gushiken. Isto tem que ficar muito claro, porque essas pessoas passaram por governos estaduais, municipais. Gente formada no sindicalismo, mas que se graduou na administração pública, como Tarso Genro, Olívio Dutra. Não se pode mais taxá-los de sindicalista. Eles foram prefeito, governador. Mas dizer que essa nova elite é viciada e incompetente é preconceito. Valor: Está havendo uma extensão da função do papel do sindicalismo aos fundos de pensão ? Cardoso: Acho que isso é residual do ponto de vista do movimento sindical. Esses grandes fundos de pensão têm sindicalistas, porque são os mais importantes. É legítimo do ponto de vista da gestão que os principais beneficiários desses fundos estejam representados nos seus colegiados e não é ilegítimo que um trabalhador ou sindicalista seja o presidente do fundo de pensão que paga aos trabalhadores. Não tem nada de errado, desde que a pessoa tenha competência para isso. Valor: O PT é um partido revolucionário? A nova elite é revolucionária? Cardoso: O PT não é um partido revolucionário, nunca foi. É um conjunto de forças políticas. Parte das tendências do PT lá nos anos 80 era revolucionária. Mas se você entra no jogo político partidário você acaba com a idéia de um partido revolucionário. Valor: O que está sendo chamado de decepção é, na verdade, o reconhecimento de que não é possível fazer revolução? Cardoso: O que está vindo à tona é uma decepção, que decorre de expectativas. O PT tem culpa no processo de construção das expectativas em relação ao partido. Porque nos últimos anos, com o esvaziamento do discurso ideológico revolucionário, o PT perdeu sua principal base de galvanização de identidade e escolheu a bandeira da ética. Sobretudo depois de 1994, durante o governo Fernando Henrique - corrupto de fio a pavio, é bom que se diga. Valor: Como assim? Cardoso: FHC nunca sofreu oposição real, exceto no fim do segundo mandato. Se ele tivesse a oposição que Lula tem hoje, teria caído por conta das denúncias de compra de votos. Quando as denúncias contra Eduardo Jorge, que nunca foram provadas, chegaram ao auge, a popularidade de FHC era de 14%. Valor: É impossível não se corromper no poder? Cardoso: O problema do PT foi ter construído o discurso da ética contra esse pano de fundo. O PT errou em ter construído seu capital político em cima de uma pilastra tão frágil, não porque o PT era corrupto então, mas porque a idéia de ética na política é antipolítica. Valor: Mas, e as denúncias de corrupção? Cardoso: Até agora não tem nada provado, com exceção dos Correios, onde as evidências são muito pesadas. E isso é curioso, porque a nação inteira - imprensa, centenas e centenas de jornalistas investigativos, Congresso, Polícia Federal - está há quase cinco meses atrás de indícios de que há dinheiro público nesse negócio e, até agora, não se provou nada. Valor: E daqui para frente, o que acontece com o sindicalismo? Cardoso: A CUT vive um dilema atroz. Porque ela é governo e não adianta querer fugir disso. E porque uma parte da CUT, a do sindicalismo do setor público, não se identifica com o governo, quer sair da CUT, e se sair provocará um efeito brutal sobre as finanças e capacidade de ação da central. Ela vive um dilema, porque é governo sem poder ser, porque, para manter sua autonomia, tem que se distanciar de qualquer governo, porque o sindicato defende o interesse do trabalhador, e governo é governo. No entanto, a CUT está inteira no governo. Hoje, o presidente da CUT está no Ministério do Trabalho e se você olhar a estrutura do ministério encontrará, além de dirigentes da CUT, a cultura da central. O MST também está no governo, os movimentos sociais se imiscuíram na estrutura do Estado. Valor: Como resolver esse dilema? Cardoso: Não resolve. A conseqüência disso é a exclusão da CUT da discussão dos grandes temas nacionais. Ela não se pronunciou sobre a crise e por quê? Porque o discurso dela é o oficial, ela está no poder e não conseguiu se distinguir dele, e isso é problema. Valor: Mas, ao mesmo tempo, os trabalhadores vêm conseguindo negociar acordos com ótimos resultados... Cardoso: Pois é, porque uma coisa é a central e outra são os sindicatos. E quem negocia acordos coletivos são os sindicatos, individualmente. Não houve uma divisão de trabalho, a CUT e o PT foram fazer a política e os sindicatos se despolitizaram. Valor: Mas os sindicatos estão, individualmente, focados apenas em conseguir melhores acordos? Cardoso: Sim, desse ponto de vista, houve uma despolitização do movimento sindical, que não tem a ver com este governo. A "despolitização" da CUT é, na verdade, politização ao extremo, ela entrou no poder.