Título: Decisão da Justiça sobre Plano Real pode criar novo esqueleto
Autor: Raquel Balarin
Fonte: Valor Econômico, 11/10/2005, Finanças, p. C2
O ponto principal da ação movida pelo ex-banqueiro Antonio José Carneiro contra as instituições financeiras está na utilização do índice IGP-2, e não do IGP-M, nos meses de julho e agosto de 1994 para corrigir os valores de Certificados de Depósito Bancário (CDB) adquiridos pelo Multiplic. É o famoso artigo 38 da Lei 8.880/94, que instituiu o Real. A diferença entre os dois índices é de cerca de 40%. O IGP-M, calculado em cruzeiros reais, foi de 40% em julho e de 7,56% em agosto. O IGP-2, em URV e em real, foi de 4,33% e 3,94%, respectivamente. O IGP-2 foi um índice provisório, apurado sob a mesma metodologia do IGP-M, que foi concebido pelos mentores do Plano Real para evitar que a inflação passada contaminasse os preços na nova moeda, o chamado resíduo inflacionário. Como os índices de inflação embutem uma defasagem de tempo entre a coleta de preços e sua aplicação na correção dos contratos, a solução foi criar um novo indicador que medisse os preços em URV - a unidade que variava diariamente e que se transformou em real a partir de 1 de julho de 1994. Se utilizasse o IGP-M, o governo estaria autorizando, na prática, a aplicação da inflação em cruzeiros reais calculada entre 20 de maio e 20 de junho para corrigir os contratos em julho. O real já nasceria, portanto, maculado pela inflação em cruzeiros reais. "O grande desafio era debelar a inflação mantendo os contratos e o poder aquisitivo. Por isso houve a equalização em URV e depois a introdução da nova moeda", explica o advogado e professor Arnoldo Wald, que defende a Confederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif) no Supremo Tribunal Federal (STF). No processo, além das questões técnicas sobre a aplicação do artigo 38, os bancos mostram que uma decisão apontando expurgo no Plano Real pode gerar um esqueleto bilionário. Apenas sobre o estoque das títulos públicos NTN-C, equivalentes a R$ 4,8 bilhões na época, a aplicação do IGP-M e sua atualização pela Selic até hoje resultariam no valor de R$ 26,5 bilhões, de acordo com parecer do secretário do Tesouro Joaquim Levy. Para o advogado Luiz Alfredo Taunay, que defende Bode, esses cálculos sobre riscos envolvendo a União são "puro terrorismo". Segundo ele, os prazos para o ingresso de novas ações contra o Banco Central e o Tesouro já prescreveram. "Na verdade, essa ação da Consif tem como alvo nossa ação contra o Unibanco", diz. A prescrição de prazo é polêmica. "Em matéria de correção monetária, há decisões que indicam alguma flexibilidade além dos dez anos", explica Wald. Uma decisão desfavorável às instituições financeiras abre espaço não apenas para que clientes entrem com ações reclamando da correção de seus investimentos, mas também para que os próprios bancos peçam ressarcimento ao governo dos investimentos em títulos públicos. A Receita Federal também poderá vir a ser acionada por empresas por impostos supostamente pagos a mais (se as despesas dedutíveis de imposto forem corrigidas pelo IGP-M, o tributo a recolher será menor). Se as instituições financeiras ganharem, tudo fica como está. O advogado Leo Krakowiak, que defende Bode em uma ação contra a Fazenda/Banco Central, é um dos reis de processos de detentores de títulos públicos. Somente no STJ, ele aciona o governo em nome dos bancos ABC Roma e Daycoval, da Roche Química, da Zanettini Barrossi, da Valisére e da Companhia Paulista de Fertilizantes. Procurado, ele preferiu não se manifestar sobre o assunto. O Valor apurou que Leo Krakowiak defende que a questão envolvendo o Plano Real não deve ser encarada como econômica e, sim, como jurídica - houve, segundo suas petições à Justiça, violação do direito adquirido e do ato jurídico perfeito. Apesar disso, um dos maiores trunfos de Krakowiak é ter em mãos um parecer econômico do falecido ministro Mário Henrique Simonsen, datado de 26 de julho de 1994, apontando que houve expurgo no Plano Real. Simonsen dizia que governo e investidores sabiam dos riscos dos títulos corrigidos pelo IGP-M. E que os aplicadores não tiveram nenhum tipo de compensação quando a inflação subiu muito. Mas, quando a inflação caiu substancialmente, o governo "comporta-se como o dono de um cassino que avidamente recolhe qualquer aposta, mas reluta em pagar prêmios prometidos". Não é possível conferir se Simonsen pensaria dessa mesma maneira hoje. "O parecer do ministro foi dado na fase em que ainda não era possível avaliar os resultados do Plano Real", explica o advogado Arnoldo Wald, que defende os bancos na ação da Consif no Supremo Tribunal Federal. Segundo ele, há hoje de 20 a 30 ações importantes contra instituições financeiras questionando a correção monetária aplicada na época do plano. "Os processos começaram em 2002. É uma tentativa especulativa de obter vantagem. Esses problemas já haviam sido suscitados em 1994/1995 em ações contra o governo e, do ponto de vista jurídico, a jurisprudência é de que o Plano Real é constitucional", explica o advogado, que classifica a correção monetária de remédio de emergência e a compara a um antibiótico. "Às vezes, temos de tomar a penicilina, mas não podemos viver à base de antibióticos", afirmou. Taunay, advogado de Bode, nega qualquer tipo de oportunismo. Diz que em vários casos as instituições financeiras que haviam entrado com processos contra o governo na década de 90 tiveram de desistir de suas demandas por pressão do Banco Central. "Foi assim com o antigo Garantia e com o Banco Liberal. Ambos precisaram de autorização para vender o controle a instituições estrangeiras e foram obrigados a abrir mão de suas ações", explica. Companheiro de Bode na diretoria do Jockey, Taunay faz mistério sobre as atividades atuais do amigo. Afirma apenas que ele está "fazendo negócios" e que está muito, muito rico. Caberá à Justiça decidir se engorda ainda mais o cofrinho do ex-banqueiro lendário no mercado carioca.