Título: Direitos e políticas: o debate do referendo (1)
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 10/10/2005, Política, p. A6

O referendo sobre o comércio de armas de fogo e munição criou as condições para se realizar um debate importantíssimo. Por mais que algumas falácias tenham sido produzidas pelos argumentos das duas frentes - principalmente pela defensora do "não" -, a população está sendo chamada para discutir e, ao fim e ao cabo, fazer uma escolha referente a um dos problemas centrais do país: a violência. Numa sociedade marcada pelo elitismo, onde a maioria é tratada como quasímodos e a minoria letrada como Hércules, para lembrar a metáfora de Euclides da Cunha, incorporar mais gente ao processo decisório é fortalecer a democracia. Acima de tudo, trata-se de um evento ímpar porque, por trás dos argumentos pró e contra desarmamento, evidenciam-se posições mais amplas e profundas acerca da cidadania no Brasil e de como devem ser produzidas melhores políticas públicas. O primeiro ganho do debate propiciado pelo referendo foi a manifestação mais explícita da imprensa a favor de um dos lados. Claro que é preciso dar espaço para todas as visões e, mais do que isso, ter uma postura crítica em relação aos argumentos de ambas as frentes. Se o grupo oficial defensor do "não" tem se caracterizado por construir sofismas e esconder sua verdadeira base ideológica, o outro lado, o do "sim", começou a campanha de uma forma muito despolitizada, como se estivesse fazendo propaganda de um remédio milagroso por meio de artistas populares. Tais críticas devem aparecer, mas acredito que a sociedade ganha mais em debates abrangentes como o atual quando a mídia torna clara sua posição. Outro aprendizado importante diz respeito ao uso de mecanismos de democracia semidireta. Sua utilização pode ser um instrumento de educação cívica, como ressalta a grande maioria dos cientistas políticos contemporâneos. Porém, não se pode a qualquer hora e em todo tipo de questão usar tais formas de consulta popular. Temas que exijam diversos processos decisórios e que sejam entrelaçados a outras legislações tornam menos profícuos o referendo e o plebiscito. Além disso, o sistema representativo deve respeitar e dar prosseguimento à decisão majoritária do eleitorado, mas pode fazer ajustes legais, particularmente no referendo, em aspectos que não tenham sido bem definidos - e o debate político mais amplo reforça esta possibilidade, como é o caso da possível correção de alguns elementos a partir da aprovação do "sim". Em outras palavras, democracia representativa e semidireta podem ser complementares e produzir, ao mesmo tempo, decisões que garantam a opinião da maioria e as ressalvas bem justificadas que protejam as minorias. Da experiência dos países que usam mais regularmente mecanismos de democracia semidireta, pode-se apreender que os temas centrais da sociedade e aqueles que apontem para uma direção no campo das políticas públicas são os campos mais propícios para a consulta popular. O caso do desarmamento se coaduna com estas duas condições, pois, em primeiro lugar, trata de assunto que divide fortemente o eleitorado - e o debate social está mostrando isso - e, ainda, porque revela uma linha de atuação na área de segurança pública. Sua aprovação ou reprovação revelará um caminho majoritário em termos de direitos e políticas. Seguindo este último raciocínio, defendo o voto pelo "sim" por conta de sua implicação no campo dos direitos e das políticas, e para tanto desenvolvo três argumentos básicos, resumidos em duas colunas. Começo pelo ângulo da gestão pública. No Brasil, os políticos e grande parte da sociedade defendem uma visão "salvacionista", segundo a qual haveria soluções únicas e/ou definitivas para os problemas sociais - e, na mesma linha, se uma medida sozinha não dá conta de todas as dificuldades, deve ser descartada. A literatura internacional e nossa experiência revelam exatamente o contrário. O melhor modelo de políticas públicas é o incrementalista, uma vez que as questões coletivas exigem diversas ações e ao longo do tempo, sendo que nenhum programa é capaz de equacionar os dilemas sociais.

O "sim" é mais uma medida contra a violência

Desse modo, a proibição do comércio de armas e munição pode ser vista como uma medida incremental entre outras no combate à violência. Ela poderá, acima de tudo, reduzir um número grande de mortes vinculadas a brigas familiares ou de trânsito, acidentes com crianças, além do contingente enorme de homicídios em discussões em bares e outros locais públicos. Ressalte-se: este universo de violência não é pequeno. Em menor medida, poderá diminuir outras formas de morte por armas de fogo, bem como o uso de armamento legal por criminosos - afinal, descobrimos que a posse dessas por bandidos é maior do que se imaginava. Sua utilidade será se somar a outras ações de desarmamento - cujo sucesso os pesquisadores da área têm revelado - e a políticas como o policiamento comunitário, programas de inclusão social de jovens, melhoria do sistema de Justiça, para ficar nas mais citadas. Os defensores do "não", ao contrário, usam o argumento maximalista de políticas públicas. Segundo eles, a proibição do comércio de armas e munição não resolverá definitivamente o problema da violência. Isso é óbvio para qualquer estudioso na área de gestão pública. O que falta dizer é: naquele tipo de morte citado acima, o desarmamento proposto é eficiente? A experiência internacional mostra que sim. No fundo, quando impera a visão do "tudo ou nada", não se consegue entender os avanços das políticas públicas e se espera que algum dia um governante "iluminado" resolva todos os dilemas sociais. Ele pode propor 10 milhões de empregos ou que vai prender todos os bandidos - aliás, a "bancada da segurança" apóia firmemente o "não" e perdeu todas as suas oportunidades em governos locais para levar adiante suas teses maximalistas, bem ao estilo malufista. Os defensores do "não" utilizam, ademais, outro argumento falso no plano das políticas públicas: quem possui armas tem mais chances de se "salvar" dos criminosos. Todos os dados, nacionais e internacionais, revelam o oposto. Neste sentido, vende-se uma grande ilusão, que, no limite, deveria resultar numa política que garantisse o direito a todos se armarem para se defender. O resultado seria mais violência e maior número de mortes no embate com os ladrões. Para além da gestão pública, o desarmamento implica uma discussão sobre direitos individuais e uma visão sobre a cidadania no Brasil. Na próxima coluna desenvolvo este tema.