Título: Dívida externa em real
Autor: Márcio G. P. Garcia
Fonte: Valor Econômico, 10/10/2005, Política, p. A11

No mês passado, o Tesouro Nacional (TN) realizou a primeira emissão de dívida externa denominada em reais. Antes do TN, empresas privadas brasileiras já haviam emitido títulos em real no exterior, e devem seguir emitindo, como o fez recentemente o Bradesco. Emitir dívida externa na própria moeda é uma realidade nova para o Brasil, bem como para vários outros mercados emergentes. A incapacidade de mercados emergentes realizarem captações de longo prazo em sua própria moeda é um problema tão importante que recebeu até um nome bíblico: pecado original. Talvez pela novidade, algumas opiniões equivocadas foram veiculadas pela imprensa, cabendo, por isso, alguns esclarecimentos. Primeiramente, o pagamento dos títulos em reais é feito em moeda forte, não em real. Apenas o cômputo dos rendimentos é feito em real, sendo convertido para a moeda forte à taxa de câmbio corrente. O título soberano brasileiro teve emissão no montante de US$ 1,5 bilhão, com ofertas de compra no valor total de US$ 7 bilhões. Seu prazo é um pouco superior a dez anos (vence em janeiro de 2016), e paga um cupom (juro) de 12,50% ao ano. Como houve um pequeno desconto no leilão, o título proverá aos investidores um rendimento de 12,75% ao ano. Alguns analistas menos cuidadosos fizeram comparações indevidas entre a taxa do leilão (12,75%) e a taxa Selic (19,50%), sugerindo que o Banco Central (BC) pudesse reduzir drasticamente a taxa Selic. Essas duas taxas são incomparáveis por diversas razões. A primeira é que se referem a aplicações de prazos distintos. A taxa Selic refere-se a aplicações de prazos muito curtos (dias). A taxa do título soberano é para um prazo muito mais longo. O prazo médio do título soberano (sua duração) é de 5,8 anos. Como se espera que a taxa Selic esteja em processo de queda por longo tempo, as taxas mais longas estão mais baixas do que as taxas curtas. Veja, por exemplo, o gráfico que é publicado diariamente na página C2 deste jornal na coluna "Por dentro do mercado". A estrutura a termo do juro privado é declinante até onde a vista alcança. Não temos no mercado doméstico taxas referentes à mesma duração do título soberano, mas exercícios de extrapolação mostram que não seriam tão distintas, uma vez incorporados os fatores adicionais que explico a seguir. A segunda distinção importante refere-se à tributação brasileira sobre rendimentos de estrangeiros. Quando um estrangeiro investe em títulos da dívida pública no Brasil, há a tributação de 15% sobre os rendimentos. O mesmo não ocorre com o título soberano que é negociado no exterior. Assim, os 12,75% corresponderiam na realidade a 15%, se o título soberano fosse negociado no Brasil (O cálculo é: 12,75% ÷ (1-0,15) = 15%). Finalmente, as convenções de cômputo de juros são distintas. Convenções distintas significam que a taxa externa tem que sofrer uma conversão para ser comparável à doméstica. Tal conversão adiciona cerca de 50 pontos centesimais à taxa do leilão.

A emissão da dívida externa em real provou a existência de excelente oportunidade para alongar a dívida interna em real

Levando em conta todos esses fatores, a taxa do leilão foi apenas um pouco mais baixa do que a taxa que se obteria da extrapolação de um gráfico de estrutura a termo do juro privado, como o da página C2. Mesmo esse pequeno desvio parece já ter sido corrigido. Desde o leilão, o título soberano tem perdido valor. Na sexta passada (7/10), o título soberano foi negociado a 13,60%, 85 pontos centesimais acima da taxa do leilão, o que corresponde uma taxa de 14,15 no mercado doméstico. Incluindo-se a tributação, chega-se a 16,65%. O vencimento mais longo do mercado doméstico é janeiro de 2010. A taxa referente a janeiro/2010 na sexta foi 15,75%, inferior ao rendimento do bônus soberano. Ou seja, a estrutura a termo dos juros em real parece já se inclinar positivamente nos vértices mais longos. Esta é a situação normal, uma vez que há um prêmio de risco por se investir a mais longo prazo. Em breve, deverá ganhar corpo a negociação na BM&F de derivativos de juros com vencimentos mais longos (janeiro de 2013, 2016 e 2017), o que permitirá comparações mais precisas entre o mercado em reais no exterior e dentro do país. De qualquer forma, uma lição pode ser tirada do exitoso leilão do TN. O investidor estrangeiro, que tem sempre sido culpado pelas crises que se abateram sobre nossa economia, hoje é muito mais otimista sobre a capacidade de pagamento do país do que os investidores internos. Várias hipóteses podem ser levantadas sobre por que isso ocorre. A teoria da diversificação do risco - não se deve colocar todos os ovos na mesma cesta - prescreve a diversificação internacional de porta-fólios. Na medida em que os cidadãos brasileiros têm necessariamente que carregar muito risco Brasil - se o país for mal é provável que o cidadão perca o emprego ou que sua firma tenha prejuízo -, tendemos a requerer maior rendimento para carregar papéis com risco Brasil do que estrangeiros, que alocam aqui apenas pequena parcela de seus porta-fólios. Outra possível razão pode ser o fato de os estrangeiros, ao avaliarem à distância o país, formarem uma visão menos pessimista do que a leitura cotidiana dos jornais nos impinge. Mas o que se sabe com certeza é que a enorme liquidez internacional tem forçado os administradores de fundos de investimento a procurarem rendimentos mais altos, e o Brasil certamente os oferece. Não só tem os rendimentos elevados, como tem condições econômicas bastante robustas, o que forma uma combinação irresistível do ponto de vista do investidor externo. A evidência internacional mostra que a existência de mercados financeiros desenvolvidos está positivamente associada ao crescimento econômico de longo prazo e negativamente à incidência de crises financeiras. Um dos principais indicadores de desenvolvimento dos mercados financeiros é a existência de títulos longos com liquidez nos mercados secundários. O sucesso do leilão do título da nossa dívida externa mostra que o investidor estrangeiro pode alavancar o processo de alongamento da dívida pública e privada em real, abrindo caminho para um perfil de financiamento menos arriscado para o governo e as empresas. Esta certamente é uma boa oportunidade que não deve ser perdida.