Título: Alemanha em uma era assertiva
Autor: Quentin Peel
Fonte: Valor Econômico, 14/10/2005, Opinião, p. A11

Após reunificação, país foi liberado para buscar seu interesse nacional mais ativamente

Na última vez em que a Alemanha foi governada por uma grande coalizão dos dois principais partidos - um de esquerda e outro de direita -, de 1966 a 1969, a maior divergência na agenda era a política externa. Willy Brandt, líder do Partido Social-Democrata (SPD), era vice-chanceler e ministro de Relações Exteriores, comprometido com uma nova "ostpolitik", que significava colocar as relações com a União Soviética e seu satélite, a Alemanha Oriental, num terreno mais pragmático. Essa política causou tensão permanente com os membros conservadores dos democrata-cristãos e seus aliados da União Social Cristã, da Baviera. Eles tiveram maior facilidade em forjar um programa econômico comum com o SPD. Desta vez, parece que o oposto é verdadeiro: há um amplo consenso em política externa, mas existem claras divergências sobre como reformar a economia alemã. Quem esperava uma grande mudança de atitudes alemãs nas relações transatlânticas com a Rússia ou com a União Européia (UE) provavelmente ficará desapontado. Naturalmente, há ainda todo tipo de incertezas no ar. Não sabemos quem será ministro de Relações Exteriores na nova grande coalizão, algo atualmente negociado por Angela Merkel, chanceler designada pelos democratas-cristãos. Será um social-democrata, mas não se sabe ainda se a mesma pessoa será vice-chanceler. O SPD foi posto numa zona de turbulência com a saída de Gerhard Schröder, pois a direita e a esquerda buscam um predomínio sem, no entanto, haver candidatos óbvios a líder da coalizão. Há também a questão de quanta atenção Merkel dará às relações exteriores, especialmente relações com UE. Tanto Schröder como Helmut Kohl, seu antecessor, assumiram o comando dessa pasta e cortaram as asas de seus ministros de Relações Exteriores, mas Merkel, pessoalmente, nunca deu alta prioridade à UE. O mais flagrante diferencial em política externa durante a disputa eleitoral foi sobre a admissão da Turquia à UE: os democratas-cristãos são firmemente contrários, o SPD majoritariamente a favor. Entretanto, agora que tiveram início as negociações de entrada da Turquia, a questão perdeu sua premência. A outra divergência significativa foi em relação ao estilo da diplomacia alemã. Schröder foi acusado pelos democratas-cristãos de ser demasiado rude com Washington, mas todos eles se opuseram ao envio de tropas ao Iraque. O chanceler foi também acusado de excessiva proximidade com o líder russo Vladimir Putin. Nesse aspecto, também, o CDU/CSU reconhece que um bom relacionamento com Moscou é essencial devido aos fortes vínculos comerciais e energéticos entre os dois países. Mas Merkel deverá dar um pouco mais de atenção às preocupações dos ex-países signatários do Pacto de Varsóvia na Europa Oriental.

Seja governada pela esquerda ou pela direita, Alemanha não é mais a parceira sempre disposta a contribuir com dinheiro pelo interesse do consenso

Quanto à política mais ampla em relação à UE, ambas as partes concordam em que a parceria franco-alemã continua sendo uma parte fundamental do processo; ambos concordam em que a Constituição para a UE não pode ser simplesmente abandonada; e ambos compartilham a visão segundo a qual a Alemanha não pode mais continuar a ser o principal responsável pela cobertura do orçamento da UE. Reduzir o déficit orçamentário alemão é uma dos fundamentos da nova coalizão, de modo que não há dinheiro sobrando para Bruxelas. Entretanto, por trás desse consenso óbvio há uma mudança mais profunda: a coalizão "vermelho-verde", que está deixando o poder, comandada por Schröder e Joschka Fischer, seu ministro de Relações Exteriores, provocou uma notável revolução na política externa alemã. As mudanças vieram para ficar. A mais espetacular é o envolvimento de tropas alemãs em operações fora da UE, primeiro em Kosovo e agora no Afeganistão. Embora o debate sobre tais ações já tivessem começado sob Kohl, este nunca ousou ir tão longe. A segunda mudança evidente é uma política alemã muito mais afirmativa, tanto na UE como em outras organizações multinacionais, como a ONU. Mas a razão para tais mudanças não foi tanto política quanto estrutural. A verdadeira causa foi a unificação alemã. O comprometimento da Alemanha em relação à integração européia e à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi sempre estimulada pelo desejo de reunificar o país. Agora que o objetivo foi alcançado, o país foi liberado para buscar seu interesse nacional mais ativamente. Berlim continua firmemente multilateralista, mas seu interesse nacional é declarado mais facilmente, como na campanha por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. O enorme custo da unificação, ainda um grande peso em seu orçamento, faz com que a Alemanha queira receber da UE mais valor em troca do dinheiro com que contribui e o direito de subsidiar o Leste alemão em dificuldades. A maior assertividade alemã - na reivindicação por mais assentos no Parlamento Europeu e maior peso para seu voto no Conselho de Ministros -, também perturbou a relação franco-alemã. Esse fato pode ter sido mascarado por sua aliança contra a guerra no Iraque, mas o desconforto permanece. A nova Alemanha continua querendo ser tanto atlanticista como européia, mas a Europa é indiscutivelmente a mais alta prioridade. Os alemães revelam-se nitidamente menos entusiastas em relação a uma ampliação da UE, se isso significar menos integração e maior custo. São mais realistas quanto ao valor da Otan e menos dogmáticos em seu comprometimento. A Alemanha continuará a promover boas relações com a Rússia, ocasionalmente fechando os olhos a desrespeitos aos direitos humanos. Em suma, a Alemanha hoje, seja governada pela esquerda ou pela direita, não é mais inteiramente a parceira amiga de todas as horas, sempre disposta a contribuir com dinheiro pelo interesse do consenso. Mas graças a seu lento sistema federal e ao permanente malabarismo exigido na política de uma coalizão, a Alemanha também nunca será agressiva. Por isto, o restante da Europa deveria ficar absolutamente agradecido.