Título: O referendo e os direitos de cidadania
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 17/10/2005, Política, p. A4

O debate acerca do desarmamento trouxe à tona algo além da pergunta que orienta o referendo. Em meio à discussão da proibição do comércio de armas de fogo e munição como uma política pública, surgiram diversos argumentos que refletem bem a noção de cidadania dominante em boa parcela da população, particularmente nos estratos de classe média para cima. A provável vitória do "não" revela uma sociedade incapaz de perceber as verdadeiras causas da barbárie brasileira. O fato é que grande parcela dos mais ricos e instruídos entrou numa lógica do "salve-se quem puder", admitindo, assim, a "naturalização" do fosso social que separa os que têm o "direito a se defender" de um contingente enorme de pobres tratados, pela elite e pelo Estado, como párias sociais. Trata-se de uma concepção bastante restrita e excludente de cidadania a que alimenta os argumentos da campanha do "não". Esta visão poderia ser resumida em três características: primeira, a defesa dos direitos não vem acompanhada pela preocupação com sua universalização; segunda, se o Estado tem falhas, que cada grupo busque, privadamente, resolver seus problemas individuais ou coletivos; e, por fim, a violência deve ser combatida pelos velhos métodos "malufistas", isto é, por uma polícia "forte" (para não dizer truculenta) e pela lógica do "quanto mais prisões (e bandidos lá dentro), melhor" - em poucas palavras, criminalidade se combate com mais violência. A primeira característica dessa visão de cidadania é a que mais convenceu a classe média brasileira. Seu lema é: "estão querendo tirar o nosso direito de se defender". No Estado de Direito, há uma série de liberdades individuais que devem ser preservadas da interferência do Poder público, entre as quais se destacam a liberdade religiosa, a de opinião, a de se organizar contra abusos dos governantes e a de ter a própria vida resguardada. Tais direitos devem valer para todos e, por isso, o Estado, como resultado do contrato social hoje referendo por métodos democráticos, precisa garanti-los e dar condições para a sua universalização. Ora, o que a campanha do "não" propõe com o "direito de autodefesa" obtido pela possibilidade de uso de armas de fogo? Que os cidadãos possam se armar diante da incompetência do Estado - e vamos deixar de lado o argumento óbvio que o criminoso tem muito mais chances de matar do que ser morto por um indivíduo que tente se defender. Porém, fica uma questão, já que se trata, segundo tal campanha, de um direito: todos têm recursos para comprar pelo menos um revólver 38 e as respectivas balas? É claro que a grande maioria não tem, sendo esta parcela exatamente a que mais sofre com a violência. "Direitos adquiridos", desde a escravidão, são para poucos no Brasil. Então, a solução para universalizar direitos, como as ações na área de Saúde ou como a transferência de renda do Bolsa Família, seria o Estado repassar dinheiro ou armas aos mais pobres? Tente imaginar, caro leitor, os políticos conservadores que comandam a campanha do "não" defendendo a política pública de distribuição de armas nas periferias, para garantir o direito de "autodefesa" a todos. A classe média entraria em pânico e o país caminharia para o caos. Mas não se preocupe, pois estamos livres de tal loucura: esta concepção excludente de cidadania não está pensando nos pobres em sua defesa das liberdades. No máximo, maior truculência policial e "muros" de proteção para os mais ricos.

A lógica do 'não' é excludente e privatista

É interessante notar que, na origem do argumento, a partir dos textos de John Locke e depois dos de Thomas Jefferson e de Paine, a autodefesa propiciada pelas armas era uma forma de garantir o direito à rebelião contra governantes despóticos. Pensem no deputado Jair Bolsonaro, que na campanha das Diretas Já estava com a ditadura, afirmando que os pobres, para não falar dos membros do MST, têm o direito a se armar contra o Estado - é inimaginável, obviamente. A única forma de rebelião que eles conhecem é aquela dos presídios, e sabemos o que os membros da frente do "não" fizeram em tais situações quando estiveram no poder. Aqui, temos 111 motivos para fugir da visão retrógrada de direitos humanos que alimenta a frente contra o desarmamento. A defesa desse restrito e privilegiado direito de autodefesa não tem nada a ver com o controle dos governantes. Sua base está num modelo de "privatização" de uma série de questões sociais: educação, saúde e, pertinente ao tema em tela, segurança privada. Por esta lógica, em vez de procurar melhorar o Estado, que cada um busque seus direitos segundo suas possibilidades. Com isso, vai se reforçar a desigualdade social. E, desde a década de 1990 a solução dos problemas sociais pela via privatista só aumentou a barbárie estilo "Mad Max" que domina as grandes cidades brasileiras. A campanha do "não" montou uma propaganda muito bem sucedida. Ela é baseada não só num modelo de cidadania que se assenta na "desigualdade escravocrata", tal qual aparece nas estatísticas e nos valores sociais hegemônicos. Sua maior arma é, na verdade, o medo legítimo que a classe média brasileira sente atualmente. Como estudioso de políticas públicas, tenho de dizer que a criminalidade será combatida efetivamente por um conjunto incremental de políticas, e o desarmamento é apenas uma medida neste leque, embora altamente eficaz contra certos tipos de violência, muito comuns no Brasil. A derrota do "sim" é a descrença no Estado e a vitória do privatismo excludente. Como os pobres vão continuar morrendo - e muito - em meio à violência urbana, e eles são necessários na hora das eleições, os políticos populistas que comungam da visão de cidadania do "não" vão propor, mais adiante, um modelo salvacionista de segurança pública. Algo como aquela música de um candidato a governador de São Paulo, em 1986, cujos versos eram os seguintes: "A segurança é nossa/ A liberdade é sua/ Bandido na cadeia/ Gente boa é na rua". Felizmente, o candidato que a utilizou hoje está preso por corrupção. Mas parece que os valores que permitiram sua longa carreira, como a de outros similares, continuam muito fortes no Brasil.