Título: Aftosa transforma futuro promissor em incógnita
Autor: Alda do Amaral Rocha De Lins
Fonte: Valor Econômico, 17/10/2005, Agronegócios, p. B13

Crise Sanitária Volta da doença espreme pecuaristas e prejudica empresas

No fim de setembro, o pesadelo da febre aftosa parecia algo distante para pecuaristas e frigoríficos. Os primeiros se queixavam da perda de rentabilidade devido ao período longo de queda dos preços do boi este ano, mas os frigoríficos projetavam ganhos maiores, justamente pelo aumento das exportações de carne bovina em 2005. Com o ressurgimento da doença no Mato Grosso do Sul, que levou a União Européia, além de Rússia, Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai , Reino Unido, Israel, África do Sul, Cuba e Ucrânia, a suspenderem as compras de algumas regiões do país, o pecuarista, já preocupado, ficou quase sem rumo. E os frigoríficos já começam a refazer suas estratégias e a rever suas previsões. O que parecia ser um ano quase perfeito - não fosse o real valorizado, seria perfeito para os exportadores -, virou, agora, uma grande interrogação para toda a cadeia da pecuária. Na região de Lins, no oeste paulista, uma das mais bem servidas em frigoríficos de São Paulo, o ânimo dos pecuaristas já não era dos melhores antes do anúncio do foco no Estado vizinho - muitos pretendem ou já estão migrando para a cana-de-açúcar, cultura mais rentável. Agora, os pecuaristas se perguntam o que vai acontecer. "Espero que São Paulo seja liberado logo", diz Vera Tobias, uma psicóloga que passou a cuidar da fazenda após a morte do pai, em 1993. Com duas propriedades em Getulina, na região de Lins, uma de laranja e gado e outra de gado, ela espera que o foco no Mato Grosso do Sul seja esclarecido e que os países suspendam o embargo. Enquanto isso não acontece, a dúvida é como se comportarão os preços do boi. A situação de Vera não é tão desconfortável, pois já tinha negociado todo o gado em confinamento. Agora, tem animais engordando no pasto e pode "esperar alguns meses" para vendê-los, afirma. Já o criador Francisco Junqueira, que produz gado em Lins, não teve a mesma sorte. Ele conseguiu vender 40% dos animais que estavam em confinamento. O restante, ainda em engorda intensiva, espera para ser comercializado. Apesar disso, Junqueira tenta se tranquilizar. "Já estive mais pessimista. Mas acho que o Ministério da Agricultura está respondendo, está esclarecendo o que ocorreu para os países compradores", afirma. Além disso, o criador acredita que o embargo ao Brasil não deve ser muito longo porque o mercado internacional "é comprador, falta carne no mercado", e Brasil e Argentina são as opções de fornecedores. Ele não descarta uma alta dos preços do boi no mercado físico, que se estabilizou após o anúncio do foco, já que há pouca oferta de animais em São Paulo. Conforme levantamentos da Scot Consultoria e do Instituto FNP, a arroba estava em R$ 59 no interior de São Paulo na última sexta-feira. De alguma forma, o ressurgimento da aftosa aproximou pecuaristas e frigoríficos. Antes do episódio, a queixa dos criadores é que não estavam sendo beneficiados pelo aumento das exportações de carne bovina enquanto os frigoríficos ganhavam com as vendas recordes ao exterior. Agora, ambos devem perder. Até o fim de setembro, o Bertin, que tem sede em Lins, previa exportações de US$ 700 milhões de todo o grupo - inclui alimentos, couro, produtos de higiene e equipamentos de proteção. Agora, já admite que esse número pode não ser alcançado após a descoberta da doença, uma vez que 65% do valor projetado antes do foco correspondia à receita com exportações de alimentos. Mas a previsão de aumento de 20% a 25% no faturamento do grupo, de R$ 3,4 bilhões em 2005, permanece, pois há perspectiva de crescimento em setores como couros e cosméticos, informa a assessoria de comunicação da empresa. No meio de uma crise como a atual conseguir manter a receita projetada já é grande coisa, mas antes da aftosa esse faturamento não era considerado dos melhores. Em entrevista ao Valor no fim de setembro, o diretor-financeiro do grupo, Douglas de Oliveira, disse que a receita seria maior "não fosse esse dólar". Na ocasião, ele afirmou que o aumento do volume de vendas ao exterior compensava o recuo da moeda americana. A Rússia, que suspendeu as compras do Mato Grosso do Sul após o foco, foi um mercado que ampliou as compras de filé e contrafilé bovino do Bertin, segundo o gerente de exportação Marco Bicchieri. O frigorífico também vinha ampliando a venda direta de produtos com marca própria para o varejo de Portugal e na Itália, além de Finlândia, Dinamarca e Suécia. Todos países da UE, que suspendeu as importações de carne bovina provenientes do Mato Grosso do Sul, Paraná e São Paulo. O Bertin tem sete unidades: Lins e Votuporanga, em São Paulo, Naviraí (MS), Itapetinga (BA), Marabá (PA), Ituitaba (MG) e Mozarlândia (GO). E anunciou recentemente investimento de R$ 92 milhões em unidade de Campo Grande, que deve ser mantido, de acordo com sua assessoria de comunicação. Com unidades em Promissão (SP), Bataguassu (MS), Paranatinga (MT) e Tangará da Serra (MT), o Marfrig fez ajustes para enfrentar a nova situação. Como Bataguassu só está produzindo para o mercado do Mato Grosso do Sul - apenas carne desossada e maturada pode deixar o Estado - , a empresa instituiu turnos extras de produção nas unidades do Mato Grosso, segundo a assessoria de comunicação. A carne produzida em Promissão está sendo destinada ao mercado interno e ao exterior, menos para a União Européia. A empresa adotou essa estratégia para conseguir cumprir os contratos de exportação que vão até o fim do ano. Exatamente por conta desses contratos é que o Marfrig está mantendo a previsão de faturar R$ 1,5 bilhão este ano contra R$ 1,362 bilhão em 2004. Conforme disse Fábio Dias, diretor de negócios do Marfrig, ao Valor, no fim de setembro, metade da receita da empresa com exportações se devia aos embarques para o mercado europeu. Com o embargo da UE a três Estados, a empresa ampliará a aposta em clientes cujas compras também vinham crescendo, como Argélia e Venezuela. Olhando agora para trás, a crise de rentabilidade da pecuária, provocada em parte pela maior oferta de gado, parece menos grave se comparada ao que o foco de aftosa pode causar. Enquanto a maior oferta decorre dos ganhos de eficiência do setor em função dos investimentos em melhoramento genético, a aftosa é resultado, no mínimo, de um descuido com a sanidade. E pode pôr a perder todos os ganhos dos últimos anos. "É muito grave que isso ocorra [a aftosa] num país que galgou o posto de primeiro exportador mundial. Isso gera perda de credibilidade", afirma, apreensiva, Vera Tobias.