Título: "Alencar na Defesa apenas sinaliza 2006"
Autor: Jamil Nakad Junior e Cristiane Agostine
Fonte: Valor Econômico, 08/11/2004, Política, p. A-8

A nomeação do vice-presidente José Alencar para o ministério da Defesa foi um erro. Além de não ser um conhecedor das Forças Armadas, não demonstra ter força suficiente para subordinar os comandos militares. A opinião é do historiador do regime militar e cientista político Marco Antonio Villa, 49, professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). O único sinal que a nomeação de Alencar emite, para Villa, é a permanência do PL na vice-presidência em 2006. A tarefa mais espinhosa, a da abertura dos arquivos, caberá ao ministro da Justiça Marcio Thomaz Bastos. A seguir, a entrevista ao Valor: Valor: Como o sr. analisa a queda do ministro José Viegas, da Defesa? Marco Antônio Villa: Quando li a trágica nota, imaginei que se fosse demitir o ministro e o comandante do Exército imediatamente. Mas isso não aconteceu. Valor: Por que a demora? Villa: Ela pode ter sido adiadapor causa do processo eleitoral. Mas dificilmente uma questão federal é o grande centro de discussões numa eleição municipal. A solução no calor da hora teria sido mais saudável. O governo tem agido de forma a não enfrentar as questões do passado. Todo mundo ficou assoberbado. Foi uma ato gravíssimo. Parece que a redemocratização não chegou ainda no Exército. A segunda nota é tão ruim quanto a primeira porque ela informa que eles não discutiram o problema do regime militar até hoje. Estamos há 19 anos com governo civil e até hoje o Exército não discutiu a questão do regime militar, não fez um balanço disso. É um absurdo alguém assinar uma nota dizendo que o Exército sequer tem uma interpretação sobre o período do regime militar. Isso não é correto. Eles têm uma interpretação e a nota do dia anterior mostrava isso. As duas notas são incongruentes. Valor: Como resolver essa questão? Villa: O governo Lula esqueceu a plataforma pela qual foi eleito. Eles devem resgatar a bandeira histórica, mas parecem ter temor de enfrentar o passado. A lei é muito severa e cria obstáculos intransponíveis para o acesso dos arquivos. Os pesquisadores não conseguem entrar no Itamaraty para pesquisar, é quase impossível. É preciso ter direito de analisar o passado brasileiro. O governo tem sido muito conservador na questão e não tem coragem de enfrentá-la. A transição para a retomada da democracia foi muito conciliadora e teve um efeito nocivo. Falta coragem histórica e política. Valor: O conservadorismo de Lula foi cultivado pelo medo de que sua eleição fosse pretexto para um golpe? Villa: Lula é mais realista que o rei. Ele imagina que o inimigo é muito mais poderoso do que é. Os militares que estão na ativa não são contra a abertura dos arquivos. Talvez os que estão na reserva possam resistir. Não existe qualquer resistência interna. Valor: A nomeação de José Alencar dá mais força ao ministério? Villa: Acho que é indiferente a nomeação do vice como ministro da Defesa. Mas ele não é especialista em defesa. É homem errado, no lugar errado, na hora errada. Foi uma solução infeliz e acaba pavimentando o ex-senador mineiro como candidato a vice em 2006. A única sinalização que me parece é que eles vão manter a aliança com o PL e o vice continua sendo Alencar e não alguém do PTB ou de outro partido, como se estava falando. Valor: Com Alencar, a abertura dos arquivos não será facilitada? Villa: Sobre mexer nos arquivos na documentação, quem vai enfrentar do lado do governo uma questão espinhosa deve ser o ministro da Justiça (Márcio Thomaz Bastos). Mas governar não é fazer churrasco na granja do Torto, no Palácio da Alvorada a toda hora, fazer canteiro, fazer vários discursos por dia. É enfrentar dificuldades cotidianas, não ter sábado e domingo, é ler relatórios, enfrentar questões espinhosas e essa é uma delas. Valor: Como Lula pode enfrentar essa questão "espinhosa"? Villa: Pode revogar o decreto que Fernando Henrique fez nos últimos dias do mandato (que protela a abertura dos arquivos secretos de 30 para 50 anos) e mandar um projeto de lei ao Congresso regulamentando a consulta aos arquivos. Isso sinalizaria o desejo do governo de estar alinhado com a democracia. Valor: De que forma pode-se evitar a caça às bruxas, a punição? Villa: Uma coisa é abertura dos arquivos. Outra são os pedidos de reparação, como estão feitos desde FHC. Agora, acionar indivíduos para que eventualmente sejam penalizados por atos cometidos naquele período não é aconselhável nesse momento. A Lei de Anistia, de 1979, foi corajosa. Permitiu a volta de cassados, banidos, exilados e muitos voltaram ao país e à política. Permitiu a reorganização partidária. Não acho que revogá-la ajude a enfrentar essa questão. Valor: Como está no geral a relação governo-militares? Villa: Viegas teve problemas em relação à questão salarial. Há uma defasagem. Para essa faixa social, os preços subiram muito mais do que a média. O governo tem dificuldade de atender a demanda dos militares por dificuldade de caixa. Mas isso passa pelo tamanho das Forças Armadas, que poderiam ser menores e mais profissionais. Boa parte da organização militar é muito antiga e temos muitos generais. Também tem que se preocupar em reequipar as Forças Armadas. No início do governo Lula, foi cancelada a compra dos aviões e o argumento era o Fome Zero. Isso é hilariante, um absurdo. Inclusive o programa Fome Zero ainda não decolou. Era um panfletarismo barato. A questão do reequipamento é fundamental, mas tudo passa pela pergunta central: "Forças Armadas, para quê"?. Valor: E na sua opinião para que deveria servir as Forças Armadas? Villa: Não é para resolver os problemas do crime organizado, ir nas periferias de São Paulo ou subir a favela no Rio. É para cumprir a Constituição de 1988, a defesa da fronteira, a manutenção da ordem. Qual é o tamanho do contingente, o equipamento que vai ser utilizado, como vai ficar o serviço militar? Não vejo os militares terem uma proposta de que tipo de Forças Armadas é fundamental para o Brasil hoje. Por parte do governo também não há uma manifestação clara. Os ministros da Defesa foram extremamente pálidos, dificultando a resposta dessa questão. Preocupo-me com o que os oficiais estudam? Será que os conceitos utilizados durante o regime militar ainda continuam imperando? A impressão que tive assim que li a nota foi de que aquele texto foi escrito no governo (Emílio Garrastazu ) Médici (1969-1974). O ministro tem que cuidar também da formação dos oficiais dentro do campo democrático. Os comandantes não assimilaram a idéia de um Ministério da Defesa. Precisa de um ministro forte, capaz e que conheça as Forças Armadas.