Título: Um momento especial para a produção de leite
Autor: Leonardo Vilela
Fonte: Valor Econômico, 08/11/2004, Opinião, p. A-10

A modernização do agronegócio brasileiro, mesmo retardada por problemas crônicos e crises pontuais, é um processo irreversível. Mais do que uma necessidade, a profissionalização das cadeias produtivas do setor tornou-se um fenômeno cultural impulsionado pelas dificuldades econômicas enfrentadas na década de 90. Graças a esse aspecto cultural, o fenômeno tende a se espalhar e criar raízes. O sucesso obtido recentemente com grãos e carnes foi uma mostra da recuperação da auto-estima de quem produz. Agora, isso se repete na cadeia do leite, que vive momento inédito no país. A atividade leiteira no Brasil esteve marcada historicamente por vultosas importações. Marco dessa dependência foi o pico de US$ 610 milhões em compras externas de produtos lácteos, observado no início do Plano Real, em 1995. Esse cenário vem mudando radicalmente, sobretudo nos últimos quatro anos, e o desempenho de 2004 merece ser comemorado. Até setembro, as importações de lácteos somavam apenas US$ 61,5 milhões, já superado o período de seca, quando diminui a oferta interna de leite. Enquanto isso, as vendas externas produtos atingiram US$ 57,5 milhões no mesmo período. Portanto, pela primeira vez na história há possibilidades concretas de o Brasil alcançar superávit na balança comercial de lácteos. As vendas externas apresentaram crescimento de 105,3% em relação aos mesmos oito meses de 2003. A expectativa para o final do ano é de US$ 80 milhões em exportações, com reflexos diretos na geração de empregos e renda, bem como nos preços pagos pela produção. Trata-se de um recorde significativo para um setor que buscou sua recuperação em meio a adversidades que o colocavam à beira de um colapso há menos de uma década. A mudança cultural que possibilitou essa retomada tem início no momento em que o produtor enxerga sua propriedade como uma empresa integrada a um mercado cada vez mais complexo e exigente. O conceito de qualidade do produto, sempre atrelado a novos investimentos, e que por muito tempo foi visto com desconfiança por alguns setores da cadeia, é hoje a chave para o futuro. Sem qualidade não há exportação, e sem exportação não há garantia de remuneração justa para o produtor. Mas os números positivos de 2004 resultam principalmente de uma mudança cultural na outra ponta da cadeia, incluindo as iniciativas profissionais de algumas empresas de laticínios e a recuperação dos preços internacionais. O exemplo mais nítido foi o da Itambé, que investiu R$ 30 milhões para a fabricação de produtos destinados ao mercado externo, com ênfase no leite em pó, condensado e queijos. Além da qualidade do produto, estar integrado a um sistema industrial é outro requisito para a conquista dos mercados internacionais. Para competir globalmente, as indústrias precisam pensar (e agir) grande. Indicador do amadurecimento dessa idéia entre as empresas de capital nacional foi a criação da Serlac Trading S/A, em 2002. Das cinco indústrias que compõem a Serlac, três são cooperativas centrais - Itambé, Cooperativa Central de Laticínios do Estado de São Paulo e Cooperativa Central Agro-Industrial . O objetivo é buscar o mercado internacional com planejamento, qualidade, constância e confiabilidade.

A cadeia do leite é a que mais gera empregos no país, da agricultura familiar aos complexos agroindustriais

A estratégia já está dando certo. As exportações do novo conglomerado foram de U$ 23 milhões, entre janeiro e setembro de 2004, o que significa quase metade do total de vendas externas do setor no mesmo período. Esse desempenho certamente ajuda a confirmar a Serlac como modelo a ser seguido por outras empresas que pretendam posicionar seus produtos no mercado externo com semelhante grau de eficiência. Além do superávit nas transações internacionais, cabe ainda ressaltar a diversificação da linha de produtos exportados e do número de parceiros comerciais. Como o mercado de leite em pó é bastante vulnerável, os exportadores brasileiros também investem em outros produtos, como o leite condensado e os queijos. Outro risco seria concentrar as vendas em um número reduzido de clientes, o que está longe de acontecer. A lista de compradores é extensa, principalmente na África e no Oriente Médio. É mais um demonstrativo da solidez dessas operações. A boa situação da balança comercial de lácteos se deve ainda à aplicação de direitos antidumping sobre as importações desleais de leite em pó provenientes da União Européia e da Nova Zelândia, além da fixação de preço mínimo para o leite em pó oriundo da Argentina e do Uruguai. Essas medidas de defesa comercial foram decisivas para reduzir as importações de leite e fortalecer o mercado doméstico. Comparando com o mesmo período de 2003, a queda foi de 27,6% nas compras externas. A prorrogação das medidas antidumping é indispensável para que o Brasil consolide suas exportações. Outras medidas governamentais são necessárias no momento. É preciso fortalecer as negociações para permitir o acesso aos mercados europeu, americano e japonês, todos protecionistas. Por tratar-se de uma batalha que não aponta soluções no curto prazo junto à Organização Mundial do Comércio, o setor está chamando a atenção do governo para outros países. O México deve ser uma prioridade, porque é um dos principais importadores de leite em pó, queijos e manteiga do mundo. A burocracia mexicana vem impondo dificuldades à habilitação de indústrias exportadoras do Brasil, e somente uma ação oficial poderá derrubar essas barreiras. Apesar da crise anunciada no complexo soja, por questões estruturais e conjunturais, o agronegócio brasileiro já tem pelo menos um motivo para comemorar em 2004. A cadeia do leite ainda não é uma das que mais rende divisas ao país, mas é a que mais emprega mão-de-obra, desde a agricultura familiar até os grandes complexos agroindustriais. Conferir o seu bom e crescente desempenho nas exportações é uma ótima notícia para a economia brasileira.