Título: Uma fronteira marcada pelo descontrole
Autor: Marli Lima
Fonte: Valor Econômico, 20/10/2005, Agronegócios, p. B12

Crise sanitária Em trecho que divide o Paraguai de Mundo Novo e Japorã, há até quem admite não vacinar o gado

A origem do vírus da febre aftosa que chegou ao Mato Grosso do Sul ainda não foi encontrada e a vigilância sanitária trabalha com várias possibilidades. Uma delas, ainda não descartada, é a da contaminação pelo gado do Paraguai. O governo do país vizinho tem rebatido essa hipótese, mas sendo ela verdadeira ou não, o fato é que não há controle entre os animais que transitam na imensa fronteira seca existente entre o Brasil e o país vizinho. O Valor percorreu ontem 60 quilômetros da chamada linha internacional, uma estrada de chão que divide o Paraguai dos municípios brasileiros de Mundo Novo e Japorã - neste último a doença já foi detectada em duas propriedades e há suspeitas de mais focos na região. No percurso, encontrou uma propriedade com animais que não estão sendo vacinados, passou por bois que transitam livremente de um país para o outro, com pessoas que têm medo de falar do contrabando de gado na fronteira e com um homem que consertava uma frágil cerca a pedido das autoridades sanitárias. Também cruzou com fazendas com nomes de santos, com propriedades de brasileiros que são cortadas ao meio pela divisa e com autoridades paraguaias que não gostaram de encontrar a reportagem. O percurso teve início entre o posto da Receita Federal no lado brasileiro e a aduana paraguaia na estrada que leva a Salto Del Guairá. No lado do país vizinho, o chefe do posto, Juan Mesa, mostrou uma lata de lixo com 15 quilos de carne e lingüiça retidos pela equipe que está fiscalizando a estrada para impedir a disseminação da doença. "Cuidar da fronteira é difícil", disse ele. A divisa dos dois países é feita com marcos de cimento distantes cerca de 100 metros um do outro e sobre eles tucanos sobrevoam a região. Menos de um quilômetro após o início da linha está a propriedade de Carlos Margis, chefe de uma das 83 famílias assentadas no local há seis anos. Ele tem 65 animais e disse que os donos dessas propriedades pequenas, todas do lado brasileiro, vacinam o rebanho. Cinco quilômetros depois apareceu o primeiro caso de uma fazenda de brasileiro dividida ao meio, a Apalosinha. Ele pertence a Ésio Missiato, de Jandaia do Sul (PR), dono da empresa de bebidas Jamel e de outras fazendas nos dois lados da fronteira. O administrador das propriedades, Manoel Favareto, contou que 2 mil alqueires com 4 mil cabeças de gado estão no lado paraguaio e 700 alqueires e 700 animais estão no Brasil. "Não compramos gado no Paraguai, só vendemos", disse. Mas ele admitiu que o trânsito de animais dos dois lados. "Se o pasto está ruim de um lado, passamos um pouco do gado para o outro", contou. Na terça-feira, o delegado Antonio Carlos Videira, do Departamento de Operações de Fronteira (DOF), havia informado que, apesar de ser uma prática comum na região, ela é proibida. Mas Favareto informou que os pecuaristas estão tentando um acordo entre as autoridades das duas nações para tornar isso legal. "Na linha internacional quase não tem pecuarista paraguaio", afirmou. Para encontrar um criador paraguaio, a reportagem foi orientada a voltar alguns metros. Ao lado da Apalosinha, em um sítio de 15 alqueires no Paraguai, o encarregado Miguel Rios contou que está ali há dois anos e não viu o rebanho receber vacina. "Vai ser vacinado esta semana", acrescentou. Durante a conversa, duas camionetes com placas paraguaias passaram pelo local. Uma com integrantes da Senacsa (Serviço Nacional de Saúde e Qualidade Animal) e outra não identificada. Seus ocupantes questionaram o motivo da entrevista. "Você não pode entrar no lado paraguaio para fazer perguntas", disse um deles. Rodados 15 quilômetros entre fazendas de agricultura e pecuária, dez bois pastavam soltos na estrada e, logo à frente, dois fiscais guardavam uma estrada de acesso ao Paraguai. "O gado solto é de brasileiro", disse um deles. Surgiram as fazendas Santa Júlia, Santa Isabel e São Paulo, todas de brasileiros, cortadas ao meio e com porteiras dos dois lados. No lado direito, no Brasil, passados 32 quilômetros um morador apontou o local onde, há um mês, foram encontrados sete corpos de uma chacina que chocou a população. Quatro quilômetros adiante está o sítio São Benedito, onde há suspeita de foco de febre aftosa. A moradora do local disse que foi proibida de dar informações por integrantes do Iagro (Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal), a autoridade sanitária do Mato Grosso do Sul. Na terça-feira foram colhidas amostras de animais de lá e a propriedade está com a porteira trancada com cadeado. O delegado Videira, do DOF, que esteve no sítio, contou que o dono tem 150 alqueires e 600 animais no lado paraguaio. Na lado brasileiro estão 24 alqueires e mais 142 bezerros. "Os 742 estão cadastrados no Brasil. As vacas criam do outro lado e os bezerros são transferidos para o lado de cá para a engorda", disse. Mais para a frente, um grupo de homens ficou receoso de falar sobre o contrabando na região. Um deles contou que "domingo é dia de passar caminhão de gado por aqui". Alguns bois, de acordo com ele, são transportados à noite. Nos 60 quilômetros percorridos, oito estradas de terra saem do lado brasileiro até a linha internacional, quatro saem do lado paraguaio e não há qualquer fiscalização. "Tem muita coisa errada. Tem gente que possui um alqueire de terra no Brasil e mil cabeças de animais. Eles não caberiam nem um em cima do outro", afirmou. Quase no final do trecho, bois e bezerros saltavam por uma cerca com um único fio de arame para a estrada. Perto deles, João Gonçalves dos Santos, de 56 anos, tentava junto com a mulher reforçar a cerca. "O Iagro mandou arrumar", explicou. Ele tem 23 animais e garantiu que todos estão vacinados. Eles são criados numa faixa de terra sem dono, entre os dois países. No fim do trajeto, onde começa o município de Sete Quedas (MS), um imóvel onde já funcionou um posto do Ministério da Fazenda está desativado e com marcas de bala. Em quase quatro horas de viagem, foi o único sinal de que já houve algum tipo de fiscalização na região.