Título: Propostas de consulta popular proliferam apesar da 3ª rejeição
Autor: Caio Junqueira
Fonte: Valor Econômico, 24/10/2005, Política, p. A9

Com a vitória do 'não', somam-se três resultados em que o eleitorado nacional, convocado a deliberar diretamente sobre temas nacionais, decide pela manutenção do status quo. No primeiro deles, em 1963, a população rejeitou o parlamentarismo, regime instaurado dois anos antes. Trinta anos depois, novo plebiscito e a opção pela manutenção da república presidencialista como, respectivamente, forma e sistema de governo. Ontem, a maioria dos brasileiros novamente preferiu não mudar as regras vigentes e permitiu a continuação do comércio de armas no país. Os partidários das consultas populares não se deixam abalar com esse resultado e apontam a forte influência da conjuntura política. Nos anos 60, o parlamentarismo foi visto pela população como um artifício para diminuir os poderes do então presidente de esquerda João Goulart. Em 1993, a facilidade da queda no ano anterior de Fernando Collor de Mello derrubou os argumentos dos parlamentaristas de que no presidencialismo não se derruba presidente. E, neste ano, a falta de uma eficiente política de segurança pública e o atrelamento do voto 'sim' ao governo federal, imerso em denúncias de corrupção, também colaboraram para manter a linha do eleitorado. A disposição dos partidários das consultas populares pode ser medida pela quantidade de projetos sobre consultas populares tramitando no Congresso. Chamam a população para decidir sobre aborto, financiamento público de campanha, voto em listas partidárias, criação de Estados, unicidade ou pluralidade sindical, redução da maioridade penal e transposição das águas do rio São Francisco. Há temas específicos como a escolha do valor do limite máximo dos benefícios concedidos pela Previdência entre R$ 2,4 mil, R$ 3,6 mil e R$ 4,8 mil, ou sobre a forma como devem ocorrer os processos licitatórios da Agência Nacional de Petróleo. O número de propostas e o seu caráter genérico revelam o sentimento no Congresso de que a democracia participativa ganha força no país, em um movimento que segue o de outros países, em especial da América Latina. A partir da redemocratização na região, os vizinhos Chile, Bolívia, Argentina, Uruguai e Venezuela recorreram à população para discorrer sobre temas importantes como privatização de estatais e permanência de seus chefes de Estado. No Brasil, atualmente, apenas o Congresso pode convocar a população para plebiscitos e referendos, mas há projetos que pretendem flexibilizar essa regra. É o caso da proposta de emenda constitucional do deputado Babá (PSOL-PA), que dá à população a possibilidade de auto-convocação mediante a assinatura de 1% do eleitorado nacional. Outra idéia, também defendida pelo PSOL, é a do plebiscito revogatório de mandatos, pelo qual a população opta em manter ou retirar do cargo o governante. Este arsenal de projetos de consultas e sobre consultas endossa a idéia de que, mesmo com a vitória do "não" que, mais uma vez, manteve uma norma, as consultas populares tendem a aumentar no país. Um paralelo pode ser feito com a derrota da Constituição Européia no referendo realizado em maio deste ano na França. Da mesma maneira como aqui, houve uma força inicial do 'sim', mas o desgaste do governo Chirac impulsionou o 'não', que recebeu 55%. "Nem por isso o instituto da democracia direta está sendo posto em questão na Europa", afirmou o cientista político Rogério Schmitt, da consultoria Tendências. No entanto, há resistências às consultas populares que podem frear esse processo de amadurecimento. De acordo com o ex-deputado federal Almino Affonso, autor do projeto que regulamentou o artigo da Constituição que dispõe sobre plebiscitos e referendos, a lentidão do trâmite e o descaso de parlamentares com que ele fosse aprovado são aspectos dessa indiferença velada quanto ao tema. "Não havia oposição explícita, mas uma omissão ampla. Nada explícito no sentido de que 'não votemos, não façamos'. Mas não havia em certos casos a consciência clara do significado daquilo." Avaliação semelhante tem a deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que foi a primeira presidente da Comissão Permanente de Legislação Participativa, órgão criado em 2001 para avaliar e encaminhar outro item da democracia participativa: os projetos de lei de iniciativa popular. A ex-prefeita de São Paulo relata que, na distribuição das quotas partidárias para as comissões permanentes da Casa, os deputados nunca queriam participar do então recém criado órgão. "Para eles, é como um castigo. Muitos acham que dar ao povo a condição de legislar, sendo por meio de consultas ou por projetos de iniciativa popular, é perder poder, dispor de prerrogativas que são deles." As resistências à democracia participativa também vêm daqueles que são, em tese, os maiores beneficiados desses instrumentos: os eleitores. Erundina afirma que, nos debates em que participou com sua base a respeito do referendo de ontem, ouviu muitas vezes reclamações de pessoas que acusavam o Congresso de jogar para a população uma responsabilidade que não lhes cabia. Para o cientista político Werneck Vianna, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), essa visão decorre da falta de amadurecimento político, razão por que, segundo ele, a ocasião do referendo de ontem foi despropositada. "É preciso haver maturidade e que seja feito um grande debate sobre a questão posta, para que a população compreenda as alternativas e faça a sua opção por meio de um embasamento técnico. Não há sentido em trazer alguns debates agora. A sociedade enlouqueceria. É preciso acúmulo de discussão e reflexão prévia." Além da imaturidade política da maioria dos eleitores, outros fatores colocam em xeque a eficiência das consultas, como delegar a decisão de temas importantes a uma maioria momentânea que pode ter uma opinião cambiante sobre determinado assunto. Outro é mencionado pelo cientista político e professor emérito da UFMG, Fábio Wanderley Reis: o abuso do poder econômico. "Há uma tendência geral favorável às consultas, mas há uma mitificação dessa participação popular, da idéia de que isso é democrático. É uma aposta simplista. Há que se lembrar que ela facilita a atuação de poderosos grupos econômicos no direcionamento dos resultados. A obtenção das assinaturas envolve alto volume de dinheiro. Ao contrário dos idealizadores, isso acabou se transformando em espaço de atuação do grande capital." (Colaborou César Felício)