Título: Sementes da governança
Autor: Daniele Camba e Nelson Niero
Fonte: Valor Econômico, 08/11/2004, EU & INVESTIMENTOS, p. D-1

O governo do Estado de São Paulo vai usar as regras da governança corporativa para "blindar" as companhias estatais. O Conselho de Defesa dos Capitais do Estado (Codec) - órgão ligado à Secretaria da Fazenda, que fiscaliza e acompanha as 17 empresas em que o governo tem participação no capital - montou, junto com o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) um curso para os 70 conselheiros fiscais dessas empresas, que geralmente são funcionários oriundos do próprio governo. A medida faz parte de uma série de iniciativas do IBGC para difundir as regras de governança - práticas que visam respeitar todos os acionistas e o mercado, mantendo o máximo de transparência e ética nos negócios. As iniciativas incluem a certificação dos conselheiros de administração e uma parceria com a bolsa de valores para treinar executivos de empresas dispostas a abrir o capital. O presidente do IBGC, José Guimarães Monforte, adiantou ao Valor as prioridades do instituto e que serão discutidas hoje no 5 Congresso Brasileiro de Governança. "Fizemos uma parceria com a Escola Fazendária (Fazesp) para treinar conselheiros fiscais e, num segundo momento, conselheiros de administração", diz Monforte. "É um trabalho que o governador Geraldo Alckmin (PSDB) chama de 'blindar as companhias do Estado', um processo que pode passar ou não pela abertura de capital." Segundo o secretário-executivo da Secretaria de Estado da Fazenda, Mário Engler, a principal dúvida que paira sobre as empresas públicas é a possibilidade de ingerência política na gestão. "O governo está preocupado com essa questão e pretende reduzir esse risco implantando a governança." A iniciativa abrange companhias com ações negociadas em bolsa como Sabesp, Cesp, Emae e Transmissão Paulista, além daquelas que estão em processo de abertura de capital, como o banco Nossa Caixa. Mas as empresas de capital fechado que prestam serviços apenas ao governo não ficaram de fora. Paralelamente, o governo está revisando os estatutos das empresas, adaptando-os aos princípios de respeito ao acionista e preparando a migração das companhias abertas para os níveis de governança da Bovespa. O próximo passo deve ser a criação de um fórum de discussão entre os conselheiros de administração das empresas públicas, também com a coordenação do IBGC. Segundo Engler, não há necessidade de um curso de capacitação desses conselheiros, nomeados pelo próprio governador, uma vez que são pessoas experientes. Um exemplo é o próprio Monforte, que hoje é conselheiro da Nossa Caixa. Antes, ele já havia sido conselheiro da Sabesp, por dois anos, mas indicado pelos minoritários. Além da parceria com o governo, Monforte, que assumiu a presidência do IBGC em março, no lugar de Paulo Villares, está empenhado no trabalho com a Bovespa. Ele é coordenador do Comitê de Abertura de Capital e é responsável por cursos de capacitação de profissionais das empresas pequenas e médias interessadas em abrir o capital no chamado mercado de acesso. O instituto também condensou o código de boas práticas de governança em um documento com os dez princípios básicos, que será distribuído pela Bovespa para 120 mil investidores. O IBGC também irá instalar um sistema para estimar o nível de governança e premiar as empresas com as melhores práticas. Esse sistema é baseado em um trabalho de pesquisa do professor Ricardo Leal, do Coppead/UFRJ, publicado pelo Valor. Outra medida é a certificação de conselheiros. O IBGC fechou uma parceria com o Institute of Directors, da Inglaterra, para importar a metodologia. Na visão de Monforte, o momento atual do mercado de capitais é semelhante ao de 1971, quando ocorreu a grande onda de aberturas de capital. Os dois movimentos tem vários aspectos em comum: o país crescendo, as empresas precisando de recursos para investir e mudanças no arcabouço regulatório, criando condições para que o mercado de capitais volte a deslanchar. A grande diferença seria o avanço da governança, o que reduz o custo de capital. "Nesses 30 anos, aprendemos o que não fazer e que empresas sem governança quebram", afirma. O cenário atual é relevante não só pela volta do interesse das empresas em abrir o capital. As ações das novas companhias estão sendo vendidas a preços muito superiores à média do mercado. A Natura estreou na Bovespa valendo oito vezes o resultado operacional, semelhante às maiores empresas da bolsa. Com a alta das ações, essa relação subiu para 11, muito próxima da de empresas americanas. Na avaliação de Monforte, a estrutura de capital no Brasil - dois terços em preferenciais sem direito a voto e um terço em ordinárias - concentrou a liquidez nas PNs. Isso eliminou o prêmio que as ONs, em tese, deveriam ter no mercado, pelo direito do voto. A abertura de capital da Natura, no entanto, mostrou que o mercado está pronto para pagar um prêmio alto para quem tem governança. O investidor mostrou que valoriza a governança. E o controlador perdeu o medo em dividir o voto com o mercado. "Isso é um divisor de águas." Apesar da evolução evidente da governança nas empresas - em boa parte forçada pela pressão dos acionistas e das autoridades -, o conselho de administração, um dos pilares da gestão, continua longe do ideal. Segundo Monforte, o conselho ainda é mal utilizado, mesmo nos países desenvolvidos. No Brasil, com raras exceções, não passam de peças decorativas. Para Monforte, a espinha dorsal de um conselho é a sua agenda. E uma boa agenda implica numa participação maior dos conselheiros. "Não existe conselho bom que se reúne apenas duas ou três vezes por ano." Ainda assim, por melhor que seja o conselho, Monforte lembra que ele tem limites. Não consegue, por exemplo, vetar uma operação considerada legal, mesmo que ela seja prejudicial aos minoritários. Recentemente, a operação envolvendo a incorporação da AmBev pela InterBrew levantou a questão dos minoritários de ações PN, que não terão direito a receber parte do prêmio pago ao controlador e aos demais donos de ações ON. "Fusões e aquisições são as áreas mais complicadas para se exercer a governança", diz Monforte.