Título: Jogo truncado
Autor: Vaz, Viviane
Fonte: Correio Braziliense, 29/04/2010, Mundo, p. 24

Brasil-Venezuela

Lula e Hugo Chávez assinam acordos comerciais em Brasília, mas pendências de pagamento deixam o visitante de cara amarrada

A despeito da assinatura de quase 20 acordos para intercâmbios na área de alimentos, energia e petroquímica, uma nuvem cinza parecia pairar ontem sobre o presidente venezuelano, Hugo Chávez, ao encontrar-se em Brasília com o colega Luiz Inácio Lula da Silva. Questionado pelo Correio sobre qual seria o motivo da ¿chateação¿ de Chávez, o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Miguel Jorge, afirmou que a questão era o impasse no sistema de câmbio venezuelano na liberação dos dólares para pagamento dos empresários brasileiros.

¿As empresas (brasileiras) dizem que está havendo um atraso, que não sai o dinheiro¿, disse o ministro, acrescentando que Chávez teria pedido já no ano passado ao então ministro venezuelano da Economia: ¿Quero que isso se resolva¿. Os atrasos decorrem das restrições levantadas pelo Cadastro de Administração de Divisas (Cadiv), órgão venezuelano responsável por liberar (ou não) os dólares para os empresários do país honrarem seus compromissos no exterior.

Miguel Jorge reconhece que o valor devido ao Brasil ¿não são amendoins¿: ¿São US$ 15 milhões em atraso, que fazem parte de um fluxo de comércio da ordem de US$ 5 bilhões¿. No total, os venezuelanos importaram do Brasil US$ 4,5 bilhões em 2009. No 17° encontro bilateral entre Lula e Chávez, chamaram a atenção os contratos para venda de produtos alimentícios de empresas específicas, como Sadia e Portal do Boi, à estatal venezuelana Casa, que oferece alimentos à população de baixa renda.

O governo brasileiro acertou ainda um acordo para a empreiteira Odebrecht construir casas populares no país vizinho. O programa terá assessoria da Caixa Econômica Federal, que já mantém escritório em Caracas. Lula destacou que é preciso trabalhar agora para que o Brasil possa ¿comprar mais da Venezuela¿ e diminuir a grande diferença na balança comercial. Um projeto petroquímico de US$ 2 bilhões entre a brasileira Braskem e as venezuelanas PDVSA e Pequiven também foi assinado.

Democracia O tema das liberdades políticas veio à tona em dois momentos. Primeiro, no discurso de Lula dirigido ao colega venezuelano. ¿O Brasil, que é a maior economia da América Latina, tem a maior população e o maior território, está vivendo neste momento seu mais longo período contínuo de democracia: 25 anos¿, destacou o presidente. Lula afirmou que se trata de uma democracia muito nova, em um continente marcado por uma ¿história de golpes e contragolpes, de pessoas que se achavam no direito de tirar do poder os democraticamente eleitos¿. E foi aplaudido quando disse que ¿o povo venezuelano e o brasileiro sabem que, apesar da língua, da fronteira¿ devem se comportar ¿como um povo de um grande país chamado América¿.

Minutos depois, Chávez teve de responder à imprensa brasileira sobre quando pretende deixar o poder, e sofreu com a comparação a Lula, cujo mandato termina em dezembro. ¿Vocês vão eleger um novo presidente. Eu não tenho isso previsto. Não tenho sucessor à vista, nem sucessão¿, afirmou Chávez. O visitante recordou aos brasileiros que a Carta Magna venezuelana não impõe limites à reeleição. ¿Estou no poder por vontade do povo e da Constituição¿, disse, acrescentando que em 2012 o povo terá outra oportunidade para escolher o governante. Chávez revelou ainda sua expectativa de que a Venezuela seja aprovada pelo Congresso paraguaio e tenha a entrada ratificada no Mercosul até o fim do ano.

Na próxima terça-feira, em Buenos Aires, Lula e Chávez terão outra oportunidade para acertar posições na União de Nações Sul-Americanas (Unasul). Os dois devem apoiar a escolha do ex-presidente argentino Néstor Kirchner para o cargo de secretário-geral. Com isso, esperam concluir mais uma etapa no processo de institucionalização do bloco, criado em Brasília, em 2009.

Ligação perigosa O chefe do Comando Sul do Exército norte-americano, general Douglas Fraser, reafirmou e atualizou a acusação de que Hugo Chávez coopera com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), que os Estados Unidos classificam como ¿organização terrorista¿. ¿Temos informações de que o governo venezuelano ainda apoia a guerrilha colombiana¿, disse o oficial. ¿Há uma relação que foi documentada e ela continua¿, insistiu o general, antes de precisar que a colaboração seria ¿logística e financeira¿.

Um beijo para a amiga Dilma

O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, lamentou não ter conseguido agendar uma reunião com Dilma Rousseff, ex-ministra da Casa Civil e candidata do PT à sucessão do presidente Lula. ¿Não poderei vê-la, mas mando um beijo para ela¿, disse Chávez. O visitante também não escondeu seu apoio à candidata governista. ¿Não quero me meter em coisas internas do Brasil, como o Brasil não se mete em coisas internas da Venezuela, mas o meu coração está aqui: Dilma Rousseff¿, disse o presidente venezuelano, para não deixar margem a dúvidas.

Chávez respondeu com diplomacia, porém, quando foi solicitado a tecer comentários sobre o ex-governador paulista José Serra, candidato à Presidência pelo PSDB. ¿Não vou me pronunciar sobre esse tema. É assunto interno do Brasil¿, justificou, antes de deixar o hotel para ir ao Palácio do Itamaraty encontrar-se com Lula.

Nas últimas semanas, o governante venezuelano tem sido duramente criticado na Colômbia, onde é acusado de interferir na eleição presidencial, marcada para 30 de maio. Chávez tem afirmado publicamente que se o vencedor for o ex-ministro da Defesa Juan Manuel Santos, candidato do presidente Álvaro Uribe, isso significará uma ameaça para Venezuela e Equador. ¿Santos, se for o próximo presidente, poderá gerar uma guerra nesta parte do mundo¿, disse em seu programa semanal de TV, o Alô, presidente, no último domingo. Uribe considerou as declarações de Chávez ¿uma ofensa ao povo colombiano e uma ingerência em assuntos internos, ainda mais com intimidações de guerra¿.