Título: Os preços dos derivados de petróleo no país da fantasia
Autor: Adriano Pires e Rafael Schechtman
Fonte: Valor Econômico, 26/10/2005, Opinião, p. A10

Lei 9.478 não garantiu um ambiente que promovesse a livre concorrência

O Brasil é o país do "faz-de-conta". Faz-se de conta que o dinheiro do mensalão veio de empréstimos bancários e serviu para pagar dívidas de campanha, faz-se de conta que a justiça é igual para todos. No setor de petróleo não é diferente, pois faz de conta que há liberdade de preços dos derivados. A Lei nº 9.478, de agosto de 1997, criou um novo marco regulatório para o setor de petróleo que tem como um dos principais objetivos promover a livre concorrência, o que pressupõe a desregulamentação total dos preços dos combustíveis. Para tanto, estabeleceu-se um período de transição, cujo término, inicialmente fixado para agosto de 2000, foi posteriormente estendido para dezembro de 2001. Durante esse período os preços dos derivados das refinarias seriam reajustados pelo governo. Com o objetivo de simular o funcionamento do mercado aberto, o governo, através de uma portaria, vinculou os preços das refinarias aos movimentos do mercado internacional e da taxa de câmbio. Ao mesmo tempo criou a Parcela de Preço Específica (PPE) que, adicionada aos preços da refinaria, resultava nos preços de faturamento pagos pelas distribuidoras de combustíveis. Ao indexar os preços dos derivados aos movimentos mensais da taxa de câmbio e dos preços internacionais, a sistemática de reajuste estabeleceu um mecanismo transparente para a formação dos preços das refinarias. A PPE arrecadava recursos para fazer frente às despesas das Contas Petróleo, Derivados e Álcool e também amortecer os impactos sobre o mercado interno da flutuação internacional dos preços do petróleo e do câmbio. Em janeiro de 2002, com a criação da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), incidente sobre a importação e comercialização de petróleo, gás natural, seus derivados e álcool etílico, que substituiu a PPE, os preços dos derivados foram totalmente liberados. Daí, imaginou-se que o mercado iniciaria uma nova fase, em que o petróleo e seus derivados seriam tratados como commodities. Todavia, sob a alegação de amenizar os impactos sobre a economia da instabilidade do câmbio e dos preços internacionais do petróleo, o governo continuou intervindo nos preços da refinarias da Petrobras - principalmente no caso do diesel, gasolina e GLP.

Imprevisibilidade da política de preços dos derivados adiciona riscos e inibe os investimentos privados no setor

Em 2002, ano da eleição presidencial, o governo segurou os preços com objetivo de angariar votos para seu candidato, mesmo diante da elevação internacional causada pela ameaça da invasão do Iraque. Em 2003, com o objetivo de cumprir as metas de superávit fiscal e, com isso, recuperar a credibilidade no mercado financeiro, os preços mantiveram-se acima do mercado internacional. Já em 2004, a prioridade do governo passou a ser controlar a inflação e ganhar as eleições municipais. Com isso, os preços dos derivados, em particular os da gasolina, diesel e GLP permaneceram abaixo do mercado internacional. O curioso é que a partir de 2004 a Petrobras divide os derivados em dois grupos. O primeiro, contendo gasolina, diesel e GLP, tem os reajustes de preço completamente desvinculados do comportamento do mercado internacional. O segundo, composto pelo querosene de aviação, nafta e óleo combustível, sofre reajustes mensais de acordo com a oscilação do mercado internacional e da taxa de câmbio. Conclusão: a política de preços dos derivados voltou a ser uma caixa-preta e ficou ainda menos transparente do que durante o período de transição. A política de caixa-preta para os preços dos derivados inibe investimentos privados no refino, na criação de traders e na construção de novos de terminais e dutos. A imprevisibilidade da política de preços adiciona riscos e constitui uma barreira à entrada de novos agentes. Uma das conseqüências concreta dessa política foi a paralisação, em 2004, das duas refinarias privadas do país. Há diferentes formas de encarar a questão dos preços dos derivados de petróleo no Brasil. A primeira é abandonar de vez os objetivos de internacionalização e de competição da indústria e adotar uma política baseada nos custos de produção. Com esta abordagem os preços seriam mais módicos do que os de hoje. Porém, a tendência de custos marginais crescentes da indústria acabaria por gerar uma capacidade de reinvestimento insuficiente e representaria uma expropriação implícita do valor investido pelos acionistas minoritários da Petrobras dentro e fora do Brasil. Uma segunda alternativa seria retornar às fórmulas paramétricas para os reajustes dos preços cobrados pela Petrobras. Nesta situação, a volatilidade de curto prazo seria reduzida com a utilização da Cide para formar um fundo de compensação, nos moldes em que se fazia com a PPE. Uma terceira, e com certeza a mais apropriada, seria transformar a Petrobras numa empresa pública, o que significa profissionalizar inteiramente a sua gestão, dando-lhe autonomia e liberdade para estabelecer sua política de preços. Com isso a administração da empresa deveria preocupar-se em agregar valor aos seus acionistas, tanto majoritário como minoritários. Ao mesmo tempo, para que esse modelo funcione é essencial o fortalecimento da Agência Nacional do Petróleo (ANP) e do Sistema Brasileiro da Defesa da Concorrência para fiscalizar e punir qualquer prática de monopólio, assegurando um tratamento isonômico às empresas concorrentes. O objetivo deste artigo não é discutir a defasagem dos preços da Petrobras em relação ao mercado internacional e sim mostrar que a Lei nº 9.478 não conseguiu criar um aparato legal que garantisse o ambiente de preços livres. Para acabar com o "faz-de-conta" é necessário rediscutir os postulados dessa lei relativos à política de preços. Dado a sua importância para o desenvolvimento do país, o setor de petróleo brasileiro não pode e nem deve viver um "faz-de-conta" na política de preços dos derivados de petróleo.