Título: Pecuaristas e frigoríficos aceleram acordo
Autor: Lauro Veiga Filho
Fonte: Valor Econômico, 26/10/2005, Valor Especial / RASTREABILIDADE, p. F3

Sisbov Programa de identificação de animais terá que adaptar-se aos diversos modelos de criação

Adversários históricos, pecuaristas e frigoríficos parecem finalmente dispostos a construir uma proposta de consenso para relançar o Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Origem Bovina e Bubalina (Sisbov). Criado em 2002, o programa brasileiro de rastreabilidade animal sempre gerou polêmicas entre os vários elos da cadeia da carne e esbarrou num impasse político no final do ano passado, responsável pela virtual paralisação do sistema neste ano. O número de novos animais inscritos na base de dados do Sisbov despencou, impondo um retrocesso que vem custando caro ao setor. Após meses de discussões, chegou-se a uma fórmula que parecia atender a todos os segmentos, definindo-se uma proposta alternativa para o Sisbov. Esta fórmula incluía, basicamente, a adesão voluntária dos criadores ao sistema, prazos mais flexíveis para sua implantação e um novo esquema para a colocação dos brincos dos animais, que admitia a identificação por lotes. A nova estrutura sugerida para o Sisbov foi apresentada em junho à Directorate General for Health and Consumer Affairs (DG Sanco), organismo da União Européia, sediado em Bruxelas, para assuntos relacionados à saúde pública e à proteção ao consumidor, responsável pela aferição dos padrões sanitários dos alimentos consumidos na região. A recepção não poderia ter sido pior para as pretensões brasileiras. "Ouvimos que não éramos sérios e que a Europa já havia tolerado por tempo suficiente nossa imprevidência no setor sanitário", relata Nelson Pineda, pecuarista e diretor técnico da Associação Brasileira de Criadores de Zebu (ABCZ). A resposta, obviamente, foi negativa, até porque o modelo europeu impõe a identificação e o rastreamento individual dos animais, desde o nascimento ou desmama. De volta para casa, a saída foi acelerar as conversações em busca de um novo consenso. "Vamos ter que correr. A rastreabilidade é uma necessidade para o país e é, além disso, uma exigência global: implantamos o sistema ou teremos que consumir aqui dentro toda a carne que produzimos", prevê Pineda. Paradoxalmente, a ocorrência da aftosa na região de Eldorado, Iguatemi, Itaquaraí, Mundo Novo e Japorã (MS) poderá contribuir para apressar as negociações em curso. Especialmente porque ficará claro que as perdas poderiam ter sido reduzidas substancialmente caso o país já contasse com um sistema robusto de rastreabilidade. Não se trata de uma panacéia, ressalva o secretário de Desenvolvimento Agropecuário e Cooperativismo do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Márcio Antonio Portocarrero. "Com um sistema eficiente ficaria muito mais fácil demonstrar a terceiros países que temos controle total da situação e condições plenas de identificar as origens e causas de uma ocorrência sanitária", afirma. Opinião partilhada tanto por Pineda, ele próprio um pecuarista que se dedica à criação de um plantel com 4 mil animais em Oriente, Lucélia e Quintana, no interior paulista, como pelo presidente da Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo), José João Batista Stival. "Com animais rastreados, a identificação da origem do foco e dos animais doentes poderia ser feita de maneira mais rápida e com menos danos", acredita Pineda. Para Stival, seria possível isolar a área afetada, evitando que as demais regiões sofressem prejuízos, já que haveria a possibilidade de assegurar aos importadores que os animais contaminados não tiveram qualquer tipo de contato com a parcela sadia do rebanho. Em resumo, "não haveria a necessidade de suspender toda a exportação", completa Pineda. O presidente da Associação das Empresas de Rastreabilidade e Certificação Agropecuária (Acerta), Luciano Médici Antunes, estima que, diante do cenário atual, serão necessários pelo menos seis meses para a normalização do mercado. "Organismos internacionais exigem a garantia de controle dos alimentos desde a origem. A Abrafrigo apóia a certificação total do rebanho, não há como fugir disso", sustenta Stival. A despeito dos pontos em comum, as diferenças entre criadores e frigoríficos não foram totalmente suprimidas. Para Stival, o mercado vai se encarregar de remunerar os criadores que fizerem a opção pelo rastreamento. Na visão de Pineda, "a rastreabilidade vai funcionar no momento em que o criador for remunerado por isso e desde que exista uma fiscalização rigorosa do governo". Mas ambos concordam num ponto: o programa deverá contemplar um sistema de identificação única, adaptado aos diversos modelos de gestão e criação existentes no país, e que possa ser auditado por organismos internacionais. As perdas para o país, numa avaliação mais ou menos unânime, não se limitam a uma situação ocasional, mas ganham contornos estruturais quando são analisados os dados da série histórica das exportações de carne in natura. Entre 1989 e 2004, as vendas externas cresceram 14 vezes em valor e 15 vezes em volume, segundo números do ministério. Neste período mais recente, enquanto o valor exportado cresceu pouco mais de sete vezes, o volume aumentou quase 12 vezes. Esse foi o resultado de uma redução nominal de 56% para os valores médios da tonelada exportada desde 1995. A partir de 1999, as exportações foram favorecidas pela desvalorização cambial e, de forma mais específica, pela crise gerada pelo mal da vaca louca na Europa e, mais recentemente, nos EUA e Canadá. A pecuária nacional conquistou novos mercados, que impõem exigências sanitárias menos severas, mas pagam proporcionalmente menos. Segundo a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec), as vendas externas de carne in natura atingiram US$ 1,723 bilhão de janeiro a setembro deste ano, para 782,9 mil toneladas. Na média dos 10 países onde os frigoríficos brasileiros alcançaram os valores mais elevados, a carne foi vendida a US$ 4.563 por tonelada. Esses 10 países, incluindo principalmente nações européias, responderam por 15,5% do valor exportado, embora tenham absorvido 7,5% do volume embarcado. Nos mercados que dominaram o crescimento recente das exportações, o preço médio por tonelada girou em torno de US$ 2 mil por tonelada, quase 60% mais baixo. Num exercício, se toda a exportação pudesse ser concentrada nos países que remuneram melhor a carne, o valor das exportações brasileiras, entre janeiro e setembro deste ano, poderia ser duas vezes maior, alcançando US$ 3,570 bilhões - 80% mais do que a exportação de carne in natura realizada em todo o ano passado. Antes dos focos em MS, o Brasil preparava o terreno para solicitar o reconhecimento de parte de seu território pela Organização Internacional de Epizootias (OIE) como área livre de aftosa sem vacinação. Isso credenciaria a pecuária das regiões Sudeste, Centro-Oeste e todo o Sul (hoje, apenas Santa Catarina é considerado livre da doença sem vacinação) a exportar para EUA, Japão e Coréia do Sul. "Somados, esses mercados respondem pela importação anual de carne bovina em valor equivalente a US$ 8 bilhões. Certamente, uma parte desse mercado poderia ser nossa", diz Stival.