Título: Modelo de gestão da web é posto em xeque
Autor: João Luiz Rosa e Ricardo Cesar
Fonte: Valor Econômico, 27/10/2005, Empresas &, p. B3

Internet Brasil faz parte de grupo de países que pressiona os EUA para compartilhar a administração da rede

Desde que começou a mudar dramaticamente a vida das pessoas, das empresas e dos governos, a partir de meados da década passada, a internet tem sido vista como o paraíso da democracia digital. É fácil entender o porquê: concebida como uma teia virtual, a rede não depende de instalações físicas localizadas dentro das fronteiras de um único país para funcionar. É, portanto, uma terra livre - ao mesmo tempo de todos e de ninguém. Será mesmo? É essa pergunta que diplomatas brasileiros e de outros países têm feito com insistência cada vez maior. O Brasil e seus aliados acham que a internet tem dono - são os Estados Unidos - e brigam para mudar as regras que regem a rede mundial de computadores. A queixa se deve ao fato de que a governança da web está sob responsabilidade da Organização da Internet para Designação de Nomes e Números (Icann, na sigla em inglês), uma organização internacional criada em 1998 e ligada ao Departamento de Comércio dos Estados Unidos. Os americanos rejeitam qualquer alteração de vulto. Não estão sozinhos. Há muita gente, mesmo no Brasil, que defende algumas mudanças na Icann, mas considera sua atuação equilibrada e teme a ruptura da atual estrutura de governança. Cabe à Icann controlar as informações básicas sem as quais seria impossível navegar na web. Para se ter uma idéia de sua influência, em tese o organismo poderia tirar um país da tomada, bloqueando seu acesso à internet. Ninguém acredita seriamente nessa hipótese - assim como a probabilidade de um país rebelar-se unilateralmente contra o modelo parece remota -, mas do ponto de vista técnico a possibilidade existe. Nas últimas semanas, o embate entre essas posições divergentes elevou a temperatura em Genebra (Suíça), onde o assunto está sendo discutido na Organização das Nações Unidas (ONU), e ameaça deixar a disputa ainda mais quente em Túnis (Tunísia). É lá, na Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, que se espera uma definição dos rumos que a questão tomará. O encontro está marcado para os dias 16 a 18 de novembro. Antes, também em Túnis, ocorrerá outra reunião preparatória, entre os dias 13 e 15. Será a última chance de chegar à Cúpula com algum tipo de acordo prévio. Em Genebra, a busca pelo consenso falhou. "Em duas semanas de trabalho não conseguimos chegar a nenhuma solução para o impasse. A expectativa é de encontrar uma saída em Túnis, mas isso não está garantido", diz Marcelo Lopes, coordenador do Comitê Gestor da Internet no Brasil e secretário de política de informática do Ministério da Ciência e Tecnologia. Os negociadores brasileiros questionam a estrutura do organismo e dizem que, sob o modelo atual, os governos não são ouvidos. "A quem vamos nos queixar se não gostarmos das decisões da Icann?", pergunta Rogério Santanna, secretário de logística e tecnologia da informação do Ministério do Planejamento. "Não temos com quem reclamar quando nos sentimos prejudicados." Santanna cita o recente caso de aprovação dos domínios ".travel", para destinos turísticos. Foi dado aos países um prazo para registrar os endereços de seu interesse com antecedência, mas no futuro os nomes que ficarem livres poderão ser solicitados por qualquer pessoa. Nessas condições, um fazendeiro de Iowa poderia acabar dono do endereço "riodejaneiro.travel", mesmo nunca tendo desembarcado no Rio. Para os governos, registrar todas as localidades turísticas - de nomes de praias a cidades inteiras -, exigiria um orçamento específico, tanto mais gordo quanto maiores forem as atrações naturais do país. Da mesma forma, a Icann autorizou os domínios ".xxx" para sites de conteúdo erótico. As empresas que quiserem proteger seus nomes devem registrar suas marcas também nessa terminação. Imagine endereços como "petrobras.xxx" ou "votorantim.xxx", ao lado de sites pornográficos ou agências de prostituição on-line. "Isso é uma máquina de fazer dinheiro. Não concordamos com essas decisões", diz Santanna. Nem todos, porém, abraçam as propostas de mudança. Vanda Scartezini, secretária de política de informática na segunda gestão de Fernando Henrique Cardoso e atual membro do conselho da Icann, defende a manutenção das funções na entidade. "A discussão já começa errada, porque a governança da internet é muito maior e envolve assuntos como a restrição de acesso a determinados conteúdos, crimes on-line e spam, que não são da alçada da Icann", diz ela. Vanda afirma que essas e outras funções são políticas públicas dos países e que a Icann não interfere na soberania das nações. "Se a China restringe o acesso à internet, a Icann não pode interferir, embora não concorde com isso. Cuba, Iraque e Afeganistão, por exemplo, têm a sua internet e não há interferência." Erica Saito, gerente da VeriSign, empresa americana que ganhou uma concorrência da Icann para gerenciar os domínios ".com" e ".net", diz que a atuação do órgão é eficaz. "Eles são transparentes e conseguem manter a internet controlada", afirma. Entre quem defende a estrutura atual, um dos argumentos mais fortes é o de que a internet funciona bem em todo o mundo, uma solidez que poderia ficar comprometida dependendo do caráter das mudanças e, em especial, do papel das Nações Unidas na nova estrutura. "Imagine a burocracia da ONU tomando conta da web. Há pouco tempo um problema derrubou a internet na Índia e a Icann saiu voando para resolver. Na ONU, populações morrem de fome e demora-se anos para decidir pelo envio de ajuda", diz Vanda Scartezini, que hoje atua como consultora em projetos de tecnologia e exportação de software. Os limites da atuação das Nações Unidas ainda são indistintos. A proposta do Brasil, encampada por países como Índia e África do Sul, prevê a criação de um fórum internacional para tratar da governança na internet. Paralelamente, seria estabelecido um órgão exclusivo para representantes de governos. Neste organismo seriam estudadas questões de grande apelo, como segurança, além de pontos específicos relacionados aos países. É o caso das questões envolvendo Tuvalu e Ilhas Maurício, países cujos domínios - ".tv" e ".mu", respectivamente - poderiam ser usados para sites relacionados à televisão e à música. Para Vanda, o risco é de que critérios políticos se sobreponham aos técnicos. As propostas de mudança, diz ela, estariam sendo influenciadas pela União Internacional de Telecomunicações (UIT), entidade subordinada à ONU que coordena redes e serviços globais de telecomunicações. "A UIT começou a sentir uma perda de poder. As telecomunicações irão para dentro da internet. Se ela não está dando palpite na internet, o que fará?", questiona a especialista. Em meio ao tiroteio verbal entre os reformadores, que pregam mudanças leves na Icann, e os revolucionários, defensores radicais do fórum, ganha corpo uma proposta intermediária, defendida pelos europeus. A Europa quer o fim do que também considera uma preponderância americana, mas rejeita a participação direta dos países no comando da internet. Pode ser que essa terceira via seja consagrada como a maneira de resolver a disputa, mas por enquanto o desenlace sobre a governança da internet permanece uma incógnita. Leia amanhã a segunda parte desta reportagem