Título: Desarmamento é apenas um lado da luta contra a violência
Autor: José Gregori
Fonte: Valor Econômico, 21/10/2005, Opinião, p. A10

Com ou sem armas, continuamos banalizando um problema social e econômico

O Brasil definitivamente precisa reencontrar o foco. Para além da crise ética e política do mundo político e da sensação coletiva de decepção e frustração gerada por ela, outro episódio importante, o já célebre referendo de 23 de outubro, corre o risco de perder-se numa discussão que, de tão intensa, transformou o "sim" ou "não" que cada um vai dizer numa das maiores questões nacionais. Vejam dois exemplos extremos. Até o presidente da República, que nunca tinha se envolvido diretamente na importante e bem-sucedida campanha de desarmamento, realizada ao longo do último ano, vem, agora, a público, fazer a defesa de sua posição. Ou ainda: com naturalidade incomum estamos até discutindo se uma nova novela na TV pode influenciar o resultado de uma votação como esta. Esperamos que o resultado seja legítimo inclusive para justificar tanto a democracia em que vivemos, como os custos de uma consulta popular como esta - algo em torno de R$ 270 milhões. A democracia tem seu preço. Mas que não se esqueça que o foco, o alvo, que podemos perder na intensidade de uma discussão pura e simples, às vezes inconseqüente, é a questão da violência, esta sim o grande, o maior problema nacional. E cujo quadro geral deverá ser atingido com este referendo. Se não nos lembrarmos disso, nem o meu "sim", óbvio, nem o "não" de tantos outros que discordam de mim, terão tido qualquer utilidade de ordem prática. Com ou sem armas, continuamos banalizando o problema, que não pára de crescer dentro de um contexto social de injustiça e que, a começar pelas grandes cidades brasileiras, cria um novo tempo dentro da própria história do Brasil. Como em nenhuma outra época, viver no país, em especial nas grandes cidades, passou a ser uma experiência de alto risco: assassinatos, roubos à mão armada, ações de tráfico de drogas e os mais diversos tipos de confronto, por vezes gratuitos e até fúteis, significam perigo, dia e noite, para todos os indivíduos. Independente do referendo, o poder público não tem conseguido dar respostas urgentes à questão da segurança da cidadania, nem conferir prioridade ao tema. O problema cresceu tanto e de forma tão assustadora que ninguém sabe ao certo onde estaria a solução. Com a certeza da complexidade deste alvo, realizamos em São Paulo, há pouco menos de um ano, um seminário sobre violência que teve como objetivo central a reunião de um grupo de especialistas das mais variadas atividades e profissões para examinar os porquês dos altos índices de criminalidade e violência no Brasil. Também queríamos entender e apontar prioridades e ações que pudessem ser implementadas pelos governantes e pela sociedade, de forma integrada, nas áreas econômica, social, cultural, da segurança e da justiça, para prevenir o crime e a violência. Depois de uma longa jornada de discussões que juntou democraticamente governo e não-governo, especialistas e leigos, polícia e vítimas, todos ao redor da mesma mesa, foram sistematizados alguns pontos essenciais que integram um documento, ainda inédito, que pode ser útil neste momento. O trabalho traz, entre outras questões importantes, dez pontos essenciais com ações para serem realizadas agora ou projetadas para curto, médio e longo prazo. Os especialistas que elaboraram este parecer depois da realização de 16 palestras sobre a violência concluíram que é preciso: 1) Manter e ampliar as campanhas pelo desarmamento, que têm tido resultados práticos no dia-a-dia do país; 2) Considerar as evidências de que a exclusão social induz a juventude ao crime em proporção maior do que a desigualdade econômica;

Segundo especialistas, Justiça age lentamente e como força conservadora diante do agravamento da violência no país

3) Lembrar que o Estado, a começar pelo chefe do Executivo, assim como os chefes dos demais poderes, deve com urgência assumir responsabilidades e admitir que a violência precisa ser tratada como prioridade nacional máxima; 4) Construir uma base nacional de dados que reúna informações sobre o crime e também sobre as ações bem sucedidas para contê-lo; 5) Intensificar a presença do Estado na periferia dos grandes centros, cada vez mais massacrados pela violência; 6) Priorizar a investigação de crimes, buscando melhorar inquéritos (só um número pequeno deles chega ao fim) e modernizar equipamentos voltados para colher e tratar informações; 7) Reconhecer a tendência de rápido aumento da população carcerária, que induz a ampliação do sistema prisional; 8) Admitir que a Justiça age lentamente e como força conservadora, na forma e no conteúdo, diante do agravamento da violência e da criminalidade. Por isso, magistratura e Ministério Público resistem a incorporar técnicas de planejamento nas suas rotinas, automatizam suas reações em sintonia com o pleito de severidade que mobiliza as classes médias e se recusam a participar de discussões sérias a respeito do problema; 9) Assumir que as polícias, tanto a territorial como a de investigação, representam cada vez menos as camadas sociais bem sucedidas, sendo por isso empurradas a um gueto social que aumenta a sua ineficiência; e 10) Constatar que a melhora do aparelho policial, inclusive com o aumento de seletividade e depuração dos maus elementos, é essencial para coibir a manifestação cada vez mais ousada do crime organizado. Pelo "sim", que é o certo mas ainda insuficiente, devemos começar a pensar, todos juntos, "sim" e "não", em como realizar alguns desses pontos. Tirá-los do plano da idéias e descobrir como agir, como ter o foco que vai, em algum momento - espera-se-, nos devolver o exercício da cidadania com segurança. Afinal, a grande questão nacional para os dias presentes é: como combater a violência? E isso não se resolve apenas no referendo atual, que é importante mas é só o começo.