Título: Baixa capacidade instalada e tributos brecam crescimento
Autor: Cynthia Malta
Fonte: Valor Econômico, 09/11/2004, Especial, p. A-12

O Brasil está com a inflação sob controle e as contas públicas em ordem. Mas a base sobre a qual está sustentada a economia brasileira, e que serviu para que se conseguisse fazer o ajuste fiscal, não permite que o país cresça de maneira vigorosa, sustentável e por muito anos. O diretor do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rogério Werneck, aponta, em especial, dois pilares da base que o preocupam: a capacidade instalada da indústria, que bate no teto e exige do governo Lula a difícil tarefa de frear a economia, e o sistema tributário, que não foi reformado adequadamente em 2003. "Manter uma economia crescendo no limite de sua capacidade é operação muito delicada e não deve ser contaminada por voluntarismo, do tipo pau na máquina que dá", diz Werneck, que comanda 15 professores e 450 alunos no departamento mais famoso da PUC-Rio, o berço de vários dirigentes da política econômica nacional, há décadas. Werneck, que já havia dirigido a economia da universidade carioca nos anos 80 e que tem se dedicado a pesquisar e escrever sobre o sistema tributário brasileiro, observa que "a forma como se tributa bens e serviços no país é uma vergonha". Para ele, o atual regime de impostos e taxas "serviu para a estabilização", mas "não serve para uma economia que pretende crescer a taxas altas por muito tempo". O governo Lula, diz, deveria aproveitar a avalanche de pleitos que Estados e municípios estão começando a apresentar, em especial para terem suas dívidas renegociadas, e voltar a pôr na mesa a reforma tributária. "Agora abre-se uma enorme janela de possibilidades que vai durar, no máximo, os três primeiros trimestres de 2005, para algum tipo de negociação ampla, totalmente ao largo de atendimento pontual, de casuísmos". A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Valor. Valor: Em junho de 2002, quando voltou a assumir o Departamento de Economia da PUC, o Sr dizia que "o desafio agora é colocar a economia em uma trajetória de crescimento rápido, a taxas relativamente altas, sem que isto implique um aumento generalizado dos preços." Qual é a avaliação que o Sr faz do quadro econômico atual? A inflação está controlada? Rogério Werneck: Da perspectiva de junho de 2002, quando havia muita incerteza na economia, nós estamos numa situação muita boa. Eu acho que não há sinais de qualquer descontrole da inflação, mas a política de combate à inflação continua sendo necessária. Mas precisamos ver o resto também. Você tem uma economia com sinais muito sólidos de recuperação, com contas externas numa posição que era inimaginável em 2002. Outro ponto importante é que tudo isso foi possível com contas públicas sob controle. Valor: Qual é a sua previsão para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) em 2004? Werneck: Um aumento de até 5% pode perfeitamente ocorrer. A expansão que está sendo observada agora se for preservada por mais dois anos, dará ao governo Lula um desempenho invejável em comparação a qualquer governo do último quarto de século. Nenhum governo fez nada parecido se levarmos em conta que as contas externas estão em ordem e as contas públicas também sob controle. A questão é que há uma grande torcida em volta do tipo "pau na máquina, acelera, vamos, dá para ir com mais força." Mas eu tenho medo de um descarrilamento. Acho que é preciso um certo cuidado para não exigir mais do sistema do que ele pode entregar. E isso tem a ver com a velocidade que puder ser observada na expansão da oferta. Há todo um processo fascinante de mobilização de recursos e expansão de capacidade, mas isso leva tempo. Isso não fica pronto da noite para o dia e você pode bater em limitações da oferta. Mesmo com acesso mais amplo a importações que se tem hoje, algumas coisas não podem ser importadas. Acho que é preciso caminhar com cuidado, um passo de cada vez. Se mais à frente ficar claro que se pode crescer mais um pouco, isso deve ser feito. Mas hoje dizer, vamos lá, crescer a 7%, é uma temeridade completa. Valor: Bateria na inflação. Werneck: Bate na capacidade instalada, bate na inflação. E as pessoas começam a enxergar uma freada mais adiante, o que é muito ruim para o crescimento. Para desengavetar projetos e fazer com que as pessoas acreditem na expansão continuada e sustentada, elas têm que formar opinião sobre sustentabilidade. Se você imprime um ritmo artificial ao crescimento, quem está pensando em fazer investimento olha para a frente e diz: "Não, a esse ritmo, ou vai capotar ou vai ter uma freada descomunal, então é melhor não ir adiante com meu projeto". Valor: Muitas pessoas acreditam que, na avaliação do Banco Central, há um limite para a capacidade de crescimento da economia brasileira, que estaria entre 3,5% e 4%. O que o Sr acha? Werneck: Essa avaliação tem que ser feita ano a ano. No começo, com a economia saindo de um processo de estagnação é até possível crescer um pouquinho mais rápido. Agora, olhando desde hoje, é possível crescer a 5% por dois, três quatro anos? Acho melhor mapear o terreno antes. Não é garantido que seja possível. Valor: Várias previsões para as economia nacional e mundial indicam desaceleração em 2005. Werneck: O que é razoável. Um ano tão bom é difícil que se repita por muito tempo. No caso da economia brasileira, a taxa de investimento é baixa e a capacidade ociosa que existia está sendo consumida. E combinando isso com quadro de economia mundial um pouco menos dinâmica, você prevê um 2005 menos feliz do que 2004, mas ainda bastante razoável. Se for 5% neste ano e 4% no ano que vem, é uma festa. Ter essa desaceleração não é nenhuma tragédia. Valor: Houve várias tentativas de promover reformas tributárias amplas nos últimos anos, e nenhuma foi longe. É possível reformar o sistema tributário com as restrições fiscais e as dificuldades políticas do cenário atual? Werneck: Este é um ponto fundamental da discussão imediata sobre as possibilidades de crescimento. Nós estamos saindo de um longo processo de estabilização. Tivemos que fazer um ajuste fiscal complicado. Esse ajuste fiscal foi muito grande, mas de péssima qualidade, dadas as condições políticas foi o que acabou sendo feito. Mas totalmente assimétrico, baseado em expansão de receita e na expansão de receita fortemente calcada em crescimento da arrecadação de impostos de péssima qualidade. Ao fim e ao cabo de toda essa peripécia da estabilização, estamos emergindo com um sistema tributário de quarta classe. Valor: Tributando mais a produção? Werneck: O país apela para ICMS, IPI, Cofins, PIS, INSS e Cide, além de outros menores. Isso é mal articulado. Não é um sistema harmônico de tributação. Isso serviu para a estabilização. Este sistema tributário não serve para o crescimento, não serve para uma economia que pretende crescer a taxas altas por muito tempo. Isso entra no topo da lista do que precisa ser feito para ampliar as possibilidades de crescimento da economia. Valor: Deveria ser prioritário para 2005? Werneck: Total. Acho que hoje se abre uma outra janela de oportunidade para a reforma tributária. Com o fim das eleições municipais e os com governadores atingindo a segunda metade do seu mandato, você tem uma lista longa de pleitos dos governos subnacionais envolvendo questões fiscais. Governos estaduais e municipais querem rediscutir dívida, desde renegociação completa até critérios de correção, por IGP ou outro índice. Estados estão engalfinhados para rediscutir a questão do ICMS. Há discussão dos Estados com o governo federal sobre restituições devidas em decorrência de isenção de ICMS nas exportações. Então, há uma série de itens desse tipo. E o enfoque que se dá sobre isso é: a União é concedente e os Estados e municípios são demandantes. Então depende do governo querer soltar mais ou menos a corda. Atende um aqui outro acolá, atendimentos pontuais, casuísmos. Isso nos trouxe onde estamos. Acho que é preciso um enfoque mais ambicioso sobre a questão federativa, para caminhar para uma solução mais adequada do lado tributário. A reforma tributária do ano passado saiu mais acanhada do que parecia e a parte principal da proposta do governo, que era caminhar para uma unificação do ICMS, encalhou. Acho que seria o momento de desencalhar. Valor: Essa negociação se limitaria a 2005 por causa das eleições para governadores e presidente da República? Werneck: Exato. Acho que essa negociação teria que ser feita nos três primeiros trimestres de 2005. A questão é se o governo federal vai perceber com nitidez essa oportunidade e se vai estar disposto a mobilizar recursos políticos para levar isso adiante. A alternativa é ele ficar assolado a todo tipo de demanda de Estados e municípios, aliados e da oposição, para coisas pontuais. Aí é só notícia ruim. Concedeu para este, afrouxou, etc. Mas pode transformar esse limão numa limonada e abrir espaço para uma reforma tributária que faça sentido. Valor: O projeto de lei das parcerias público-privadas (PPP) cria risco de descontrole nas finanças públicas? Werneck: O cuidado que se deve tomar é para que as PPPs não sejam usadas para legitimar programas de dispêndio público por parte de governos que não têm condições de bancá-los. O problema das PPPs é evitar que sejam PQPs, ou parceria quase-públicas. Ou seja, um projeto financiado por bancos estatais e fundos de pensão estatais, com base em garantias dadas por um governo estadual e municipal. Onde está o privado? O que você tem aí é a religação de um duto de recursos da área federal para esferas estadual e municipal. Nós já vimos esse filme antes e não acaba bem. Valor: O Banco Central, em seu último relatório da inflação, concluiu que um aumento de 0,9 ponto percentual do IPCA já está dado em 2005 por conta de aumentos feitos neste ano, em especial nas tarifas públicas. Decidiu carregar dois terços deste aumento para a meta de 4,5% em 2005, que acabou subindo para 5,1%. A indexação ainda é fator importante de realimentação da inflação? Werneck: Sem sombra de dúvida, ainda é. A questão é como lidar com isso. Há dois caminhos que não são mutuamente exclusivos. Os dois podem ser trilhados. Um é você continuar o esforço de desindexação da economia e, ao mesmo tempo, melhorar as regras de indexação. Muitas das regras de vinculação aos IGPs talvez pudessem evoluir a uma indexação ao IPCA ou a um outro índice mais palatável. Valor: É o que o governo está tentando fazer, ao trocar IGP por IPCA em contratos de energia? Werneck: Sim, mas isso não é trivial. Pode gerar uma série de efeitos colaterais complicados, de encarecimento de tarifa. Não é muito fácil saber qual é o efeito líquido dessa medida no setor de energia elétrica. Como os contratos de financiamento tem indexação pelo IGP pode ficar mais complicado conciliar isso com uma regra de tarifa pelo IPCA. Esse descasamento vai ser complicado. O certo é que, na medida do possível, deve se caminhar para regras de indexação mais bem desenhadas. Valor: O que mais poderia ser feito nesse campo? Werneck: Outro caminho que pode ser trilhado é evoluir para metas de inflação baseadas no núcleo de inflação, excluindo uma série de preços indexados. Valor: O Brasil já está maduro para trabalhar com o sistema de core-inflation (núcleo de inflação) ou ainda haveria gente achando que o BC está escondendo inflação? Werneck: O ideal, em termos de core inflation, é ir fazendo as duas coisas ao mesmo tempo e mudar de um índice para outro, quando não for necessário. É preciso muito cuidado pois estamos construindo a credibilidade do regime de metas de inflação. Então, não se pode botar isso a perder. Isso não resolveria a meta deste ano ou do ano que vem. Mais pode se convergir para alguma coisa mais à frente.