Título: Flamengo, Bernardinho e o "emendão"
Autor: Fabio Giambiagi
Fonte: Valor Econômico, 07/11/2005, Opinião, p. A11

Há anos, nós, torcedores do Flamengo, temos nos conformado em escapar da Segunda Divisão. Flertamos durante meses com o rebaixamento, até que na última rodada nos livramos de cair e ficamos felizes. O resultado está aí. Em contraste, Bernardinho, o técnico de vôlei, é um comandante que se consagra campeão do mundo em um domingo e na segunda-feira já está cobrando o treinamento e começando a preparar a seleção para a competição seguinte. As economias que dão certo funcionam como o Bernardinho. Se continuar seduzido pela mediocridade, o Brasil corre o risco de ter a cara do Flamengo. Por isso, a proposta de uma agenda que possa ser objeto de negociação com a oposição, com vistas a aprovar uma reforma para limitar o gasto e reduzir as vinculações (o "emendão") deve ser apoiada. É uma tentativa de o Brasil se parecer mais com o Bernardinho e menos com o time do Flamengo dos últimos anos. O lento processo de modernização do Brasil dos últimos 15 anos pode ser dividido em três fases. Na primeira, até 1994, a abertura mudou a economia, mas a alta inflação era um câncer. Na segunda, durante 1995/1998, conquistamos a estabilização, mas a política macroeconômica deixou muito a desejar. Na terceira, após 1999, fizemos os ajustamentos externo e fiscal, mas as contas públicas se caracterizaram pelo trinômio gasto corrente crescente/carga tributária recorde/investimento em queda. Isso ajusta as contas, mas mata o futuro. Chegou a hora de atacar a gastança. O "emendão" é a defesa da aritmética contra a ausência de limites. A tabela mostra a falácia dos que dizem que o ajuste fiscal representou o arrocho do gasto. Nos 11 anos desde a estabilização, nas contas do governo central, ao comparar 1994 com a estimativa para 2005, vemos que o resultado primário é quase o mesmo, mas a despesa corrente subiu seis pontos do PIB e o investimento caiu pela metade. O que o "emendão" busca é reverter esse processo, aumentando a poupança do governo para investir mais. Se o "emendão" não for aprovado, perpetuaremos o quadro atual. Nesse caso, o crescimento futuro pagará o preço.

O "emendão", que pretende limitar o gasto e reduzir as vinculações, é a defesa da aritmética contra a ausência de limites para a gastança

O mundo das finanças fala bem do país, mas não pelos nossos méritos (que temos) e sim porque nos últimos anos quem apostou no país ganhou rios de dinheiro. Tome-se o caso de um investidor que no dia 31/12/02 tenha decidido ingressar recursos no país, aplicando no investimento mais simples que existe: a caderneta de poupança. Medida em US$, a rentabilidade deste cidadão terá sido de 36% em 2003, 18% em 2004 e, com dólar a R$ 2,30, 26% em 2005. Mais de 100% de rendimento em dólar em três anos: nada mal. Na caderneta de poupança! Assim, qualquer país se torna bonito. Já no mundo real, o que o Brasil fez em termos de reformas estruturais? A dívida externa está caindo, o Banco Central está combatendo a inflação com êxito e o superávit primário vai muito bem, obrigado. Em matéria de mudanças de fundo, porém, o que temos para exibir? O país vivia na idade das carroças em 1990, quando começou a se modernizar. Collor mudou a agenda com a abertura, em 1990, e no governo FHC tivemos 10 reformas estruturais de porte: 1) a privatização, que retirou empresas importantes da alçada da influência política e melhorou a eficiência da economia; 2) o fim dos monopólios estatais, que gerou o "boom" de investimentos nos setores afetados; 3) a mudança do tratamento do capital estrangeiro, que permitiu a escalada do ingresso de investimentos diretos da ordem de US$ 10 bilhões a US$ 20 bilhões/ano; 4) o saneamento do sistema financeiro (hoje, um dos mais sadios entre os emergentes); 5) a mudança (parcial) da Previdência (até 1998, era possível se aposentar aos 48 anos com aposentadoria integral!); 6) a renegociação das dívidas estaduais (um marco); 7) a Lei de Responsabilidade Fiscal (que divide a história das finanças estaduais em um "antes" e um "depois" da lei); 8) o ajuste fiscal de 1999, um dos maiores da história do país; 9) a criação de agências reguladoras; e 10) a adoção das metas de inflação, uma modernização institucional que veio para ficar. Em cada um desses casos, houve transformações que mudaram o país para melhor. O problema é que, na sequência, em matéria de reformas, na década atual fizemos muito pouco. Em 2003, podemos dizer que fizemos uma nova reforma da Previdência. Mesmo assim, o que houve de estrutural no caso foi a taxação dos inativos, cujo impacto pode ser medido: representa um ganho de receita de 0,1 % do PIB por ano. É difícil argumentar que seja muito significativo. Depois, outras medidas, como as PPPs ou a Lei de Falências, embora positivas, foram relativamente modestas. Enquanto isso, os demais países emergentes estão passando pela gente em alta velocidade. A China implementa as decisões do Comitê Central com precisão cirúrgica; a Coréia resolveu os problemas que tinha em 1997; a Turquia vem fazendo um esforço fantástico para se credenciar ao ingresso na União Européia; os antigos países socialistas amadurecem a olho nu; o Chile é uma economia onde cada dia há mais competição; e até mesmo a Argentina, depois de 2002, andou para a frente. Nos últimos anos, tivemos a ajuda dos juros internacionais baixos. Há indícios de que isso pode estar acabando. O mundo não será o mesmo com uma taxa de juros nos EUA de 4% que com outra de 5%. Quando a maré virar, os investidores se tornarão mais seletivos e olharão para ver quem aproveitou a bonança e quem apenas "surfou na onda". O Brasil tem pressa. Precisamos nos preparar para quando a mudança acontecer e descontar o tempo perdido - para que no futuro precisemos nos preocupar apenas com o Flamengo.