Título: A linha divisória do Iraque
Autor: Amal Kashf Al-Ghitta
Fonte: Valor Econômico, 07/11/2005, Opinião, p. A11
É preciso convencer os iraquianos que a liberdade pode melhorar suas vidas
Qualquer pessoa que olha para o Iraque vê um país dividido entre comunidades xiitas, sunitas e curdas. Mas uma divisão igualmente fundamental - que tem contribuído para a insurreição continuada, para a luta sectária e para oposição à ocupação militar liderada pelos EUA - é o abismo crescente entre os ricos e os pobres do Iraque. Quando o Iraque foi liberado, a maioria das pessoas, especialmente as pobres, começou a esperar por um líder carismático que os redimisse da amarga realidade do cotidiano. Educados no medo, não tinham a menor idéia de como a democracia poderia se inserir na sua sociedade, ou de como os grupos de direitos humanos e outras organizações civis poderiam ajudar a moldar o seu futuro. Muito rapidamente, o Iraque se viu diante de uma nova linha divisória social. De um lado estavam as pessoas que entenderam como atuar numa democracia, alcançar o poder e realizar as suas ambições. Elas aprenderam a falar a linguagem da democracia, ganhando dinheiro e influência nesse processo e arregimentando organizações independentes para defender os seus direitos e privilégios. Do outro lado, porém, permanece a vasta população dos iraquianos desprovidos de poder, incluindo viúvas e divorciadas ou mulheres abandonadas sem ninguém para cuidar delas e de suas crianças. Para essas pessoas, democracia e direitos humanos não significam nada. Elas são ignorantes, pobres e doentes. Vitimadas por um sistema educacional que desmoronou há mais de uma década, têm poucas qualificações que lhes possam ajudar a encontrar emprego na economia arruinada do Iraque. Durante o domínio de Saddam, nenhum esforço foi empregado para elevar os padrões de vida dos pobres. Visitei as enormes favelas do Iraque e encontrei famílias vivendo em casas com apenas um teto para cobri-las, infestadas de insetos por todas as partes e com o esgoto aberto entrando sob as suas portas. De dia ou de noite, vivem na escuridão. Necessitando de nada mais do que alimento, moradia decente e a possibilidade de um emprego, essas famílias aguardam a morte, temendo os gritos dos seus filhos famintos. Quando encontrei as mulheres que vivem nessas casas, elas me inundaram de perguntas: a democracia nos dará comida e casas? A democracia impedirá que os homens surrem as suas esposas? Ela outorgará cidadania aos nossos filhos? Nos conferirá o direito de divorciar dos maridos que nos abandonam? Minha resposta a todas essas perguntas foi "sim". Sim, a democracia lhes conferirá o direito de morar em uma casa decente, o direito de estudar e trabalhar e outorgará cidadania aos seus filhos e colocará vocês em pé de igualdade com os seus homens. Mas vocês precisarão dar duro e empregar todos os esforços possíveis para exigir os seus direitos. Elas responderam: "Saddam nos ensinou durante 35 anos a sermos desempregadas, caladas e temerosas. O que poderemos fazer agora?"
Existe uma vasta população pobre, ignorante, doente e desprovida de poder; para essas pessoas, democracia e direitos humanos nada significam
Nessas regiões carentes, nas quais vive a maioria dos iraquianos, as pessoas são vítimas de tentações amargas. Muitos estão fora do alcance dos líderes políticos ou do governo. Eles resvalam facilmente para a violência, o roubo e a sabotagem. A pobreza motiva alguns a aceitarem dinheiro em troca de atos de violência, instigados pela sedução de um falso heroísmo que eles não conseguiram colocar em prática durante o prolongado domínio de Saddam. A pobreza exacerbou o trauma da violenta história de guerras e atrocidades do Iraque, que insensibilizou as pessoas à matança. Embora as condições no Iraque atualmente estejam atraindo muitos jovens na direção da violência, estou convencida de que só precisaremos oferecer postos de trabalho e moradias decentes para salvá-los. Os empregos, em particular, ajudarão os jovens a criar novas vidas através de trabalho sério. Não devemos usar empregos sem trabalho para dissimular um exército de desempregados. Devemos dar às pessoas empregos que lhes permitam dar uma contribuição para reconstruir o país. Por natureza, cada indivíduo procura provar a si mesmo que é uma pessoa útil na sua sociedade. A cultura de Saddam, porém, gerou iraquianos convencidos de que as conexões políticas são o único meio de se conquistar autoridade, dinheiro e conhecimento. A superação desses sentimentos exigirá tempo e uma economia vibrante, o que significa que um novo governo iraquiano deverá ter poder limitado, permitindo ao setor privado prosperar, ao mesmo tempo em que estimula uma compreensão abrangente da democracia e dos direitos humanos. Grupos religiosos estão prontos para contribuir para esse processo. Também podemos reabilitar os tecnocratas que serviram sob Saddam para que eles também tenham uma oportunidade para servir o seu país. Por último, mas não menos importante, precisamos disponibilizar empréstimos às famílias pobres para ajudá-las a construir uma vida respeitável. Acima de tudo, o governo não deve poupar nenhum esforço para convencer os iraquianos pobres acerca do valor da democracia e da liberdade, e de como a Constituição é importante para a concretização das suas aspirações por uma vida melhor. Isso não será fácil de realizar em um país em que muitas pessoas consideram a violação da lei um ato de heroísmo. Mas nós, iraquianos, também aprendemos que o poder não deve ser concentrado em poucas mãos, e que a implementação da justiça requer lutar contra todas as formas de corrupção. Se a Constituição precisar atuar como garantia da democracia, da liberdade e da segurança, os iraquianos pobres precisarão aprender a incorporar essa luta.