Título: Brasil-EUA: uma mudança de ênfase
Autor: Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 09/11/2005, Brasil, p. A2

A novidade na excitante política externa brasileira foi a bem-sucedida visita do presidente George W. Bush a Brasília. Deu tudo certo, mesmo que, paradoxalmente, nenhuma novidade tenha sido anunciada. Faltou conteúdo, mas sobraram imagens. Lula faturou. Fez um gol e, assim, diminuiu a goleada que vem sofrendo na opinião pública desde o início da interminável crise política. Inicialmente, o plano de Bush era permanecer em terras brasileiras por míseras seis horas. Acabou ficando um dia, com direito à pernoite. O plano original era mostrar pouco-caso. Seria uma reação ao tom antiamericano atávico de integrantes da cúpula do Itamaraty e à pouca relevância atribuída pelo governo petista às relações com os EUA. O sucesso da visita de Bush a Lula começou a ser construído há algumas semanas, quando o chanceler Celso Amorim foi a Washington avistar-se com a secretária de Estado, Condolleeza Rice, e outras autoridades americanas. Amorim ficou surpreso com o tratamento distinto que recebeu. Até então, não tinha feito visitas políticas à capital americana. Quem as fez antes dele foi o então ministro da Casa Civil José Dirceu, que, desde a campanha presidencial, estabeleceu comunicação direta e preferencial com a Casa Branca. Na verdade, Rice já havia surpreendido Amorim bem antes da visita dele a Washington. Quando foi nomeada secretária de Estado no início de 2005 - no primeiro mandato de Bush, ela atuou como conselheira de segurança nacional -, Rice telefonou para um seleto grupo de chanceleres. Na lista, incluiu o brasileiro. Um claro sinal de deferência. Há dois meses, Amorim não vivia um bom momento no governo. Sua política externa, marcada por um forte viés terceiro-mundista, claudicava. A coleção de derrotas era tão grande que, numa sessão promovida pela Comissão de Relações Exteriores do Senado, Amorim gastou a maior parte do tempo reclamando das críticas da imprensa. Não se sabe se por pragmatismo ou se por deliberação do Palácio do Planalto, o chanceler mudou o tom em relação aos Estados Unidos. Amorim nega o antiamericanismo. Diz que os críticos, por terem cabeças colonizadas, confundem altivez com impertinência, independência com subversão. Não é verdade. Posturas antiamericanas, mesmo contrariando o pragmatismo de Lula, grassaram na política externa dos últimos três anos e, certamente, ainda pontuam em cabeças coroadas da atual gestão do Itamaraty. São elas que confundem política externa independente com bravatas estudantis. Agora mesmo, o PT, o partido de Lula, patrocinou manifestações ruidosas contra Bush. Haja pragmatismo! É para essa mesma platéia do PT que a política externa antiamericana vinha jogando. O fato é que há um claro esforço de Amorim para, enfim, desfazer essa percepção. Ele conta, para tanto, com a permanente boa vontade do governo Bush com a gestão Lula. E, claro, com a química desenvolvida entre os dois líderes. Os americanos são ainda mais pragmáticos e isso ajuda muito. Concentrados em seus interesses em outra região do planeta - o Oriente Médio -, eles não querem aborrecimentos por aqui. Além disso, começam a distinguir o Brasil de seus vizinhos latino-americanos, uma velha reivindicação do Itamaraty.

País parece entrar no radar dos americanos

"Os EUA cada vez mais vêem o Brasil como um animal diferente na América Latina", atesta um experiente diplomata. "O grande problema dos americanos no continente é o Chávez (Hugo, presidente da Venezuela). É o único assunto da região que, neste momento, os tira do sério." O Brasil entrar no radar dos EUA evidentemente não é obra deste governo. É resultado do processo de modernização do país, do crescimento de sua importância política e econômica. Na prática, não fosse justamente o antiamericanismo retórico do Itamaraty tolerado em Brasília, o país poderia ter tirado mais vantagens da aproximação entre Lula e Bush. Quando esteve recentemente no Brasil, o embaixador Robert Zoellick, o segundo na hierarquia diplomática americana, disse que os EUA querem ter com o Brasil um relacionamento mais do que cordial e amigável. Querem uma relação especial, profunda, mais intensa do que aquela que já têm com duas das maiores nações emergentes - China e Índia. Ter como aliado na região um presidente operário, que por esta razão já encarna o "sonho americano" da superação e da mobilidade social, supostamente de esquerda e, assim mesmo, seguidor da cartilha econômica ditada por Washington, é para Bush um bom mote. Em Brasília, num encontro repleto de imagens positivas, emoldurado por um dia ensolarado e por uma Brasília radiante após seis longos meses de seca, o presidente dos EUA mostrou aos outros líderes sul-americanos que seu amigo aqui é o "esquerdista" Lula. "A visita foi feliz visualmente e se contrapôs ao noticiário de tensão e frustração de Mar del Plata (onde a Cúpula das Américas falhou em sua tentativa de relançar as negociações da Alca)", diz um especialista em diplomacia, lembrando que acertou quem sugeriu a Lula que servisse a Bush churrasco de carne do Mato Grosso do Sul, o estado mais afetado pela febre aftosa. A diplomacia não é feita apenas de idéias, mas de símbolos. As imagens de Lula acompanhado do líder da nação mais rica do planeta, num convescote descontraído no jardim da Granja do Torto, agradam tanto estratos mais humildes da população quanto das elites, que, como se sabe, andam à beira de um ataque de intolerância com o presidente, cujo governo sangra há seis meses em meio a denúncias de corrupção. As imagens ajudam Lula internamente. Os EUA, queiramos ou não, é uma referência importante no imaginário dos brasileiros. Em 1995, Fernando Henrique Cardoso fez uma visita ao então presidente americano Bill Clinton e as imagens ajudaram a desanuviar o ambiente carregado de Brasília. Mal começava o seu primeiro mandato e FHC já enfrentava turbulência no Congresso, enquanto explodia, no México, uma crise cambial que ameaçou levar a breca o recém-lançado Plano Real. O encontro com o popularíssimo Clinton foi um verdadeiro bálsamo.