Título: Uma década de ajuste forçado
Autor: Gonçalves, Marcone
Fonte: Correio Braziliense, 02/05/2010, Economia, p. 18

Depois de 10 anos da Lei Complementar nº 101, a imagem do Brasil passa de país ex-caloteiro a exemplo para o resto do mundo

Quem não consegue pagar uma dívida sabe que vai enfrentar um calvário até ajustar suas contas. O nome sujo impede o acesso ao crédito e ao cheque e provoca até a desconfiança dos comerciantes, amigos e parentes. Com os países, ocorre algo parecido. No momento em que o mundo assiste a mais uma crise causada pelo descontrole das contas na Grécia, um ex-caloteiro, o Brasil, se apresenta como um exemplo de que é possível dar a volta por cima. O agora bom moço das finanças públicas arrumou a casa (1)depois de ter protagonizado sucessivos calotes e diversas maxidesvalorizações da moeda e finalmente, em 1999, ter sido sacudido por uma crise de desconfiança parecida com a grega, que o obrigou a mudar de postura. Com base em um acordo político sem precedentes, governadores e prefeitos foram proibidos de gastar sem ter dinheiro, de repassar a dívida para os seus sucessores e, principalmente, de continuar sendo socorrido pelos recursos do contribuinte. Para deixar claro que a farra com dinheiro público acabara, foi promulgada em maio de 2000 a Lei Complementar nº 101, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que, na próxima terça-feira completa 10 anos. O normativo legou uma série de benefícios à estabilidade econômica e administrativa do país. Um deles dá para medir: o desempenho das contas dos estados. No período de vigência da lei, a dívida estadual cresceu 90,27% e atingiu R$ 351,1 bilhões. A expansão poderia ser preocupante, se não fosse o fato de que mais dívida só pôde ser feita porque o governador arranjou recursos para pagar. E neste mesmo tempo, as receitas dos estados subiram quase 200%, passando de R$ 108,4 bilhões para R$ 307,4 bilhões.

Outras conquistas Há, porém, outros resultados da lei que não se traduzem em números, mas são fáceis de perceber. Os atrasos de quatro e até seis meses no pagamento dos salários de servidores públicos acabaram, aumentou a transparência das informações e terminaram as renegociações de dívidas no Congresso cujos custos acabavam sendo repassados ao Tesouro Nacional. Para Ubiratan Aguiar, presidente do Tribunal de Contas da União, a lei fiscal é uma das maiores conquistas da administração pública nos últimos 20 anos. ¿Essa lei traz o que todo casal sempre fez com o orçamento doméstico: planejar e organizar o que gasta de acordo com o que ganha¿, assinala Aguiar, que preside o órgão responsável por fiscalizar o cumprimento da lei na esfera federal. ¿Ao limitar os gastos dos três poderes, a LRF acabou com a cultura de deixar o prejuízo para o próximo que vier¿, acrescentou o ministro. Sem poder contar com o socorro de senadores e deputados, os gestores públicos brasileiros têm que se preocupar em alcançar as metas estabelecidas para o equilíbrio de suas contas e para os limites de gastos com pessoal, sob pena de serem cassados ou presos. Isso porque, para fazer valer a LRF, existem penas severas para os administradores públicos, entre elas a cassação do mandato e a prisão do gestor. Com isso, a lei ¿pegou¿ e hoje é modelo para outras ¿leis de responsabilidade¿ na área de educação, sanitária, social que tramitam no Congresso.

Caráter educativo Assim como as multas por si só não resolvem os problemas de trânsito, a lei fiscal também não se sustenta somente nas sanções. ¿Mais importante que punir, a LRF estabelece regras que evitam que os problemas aumentem, como, por exemplo, proibir novos empréstimos¿, explica o economista José Roberto Afonso, que participou da elaboração da lei. ¿Além disso, as regras legais induzem a redução dos excessos cometidos, como o aumento dos gastos e da dívida, num período razoável suficiente para a melhoria da receita¿, assinala. Para José Roberto, o caráter educativo da lei mostra uma diferença importante entre a LRF e as regras que estabeleceram a convergência fiscal para a união monetária europeia. Os países da zona do euro têm de cumprir metas permanentes que limitem o deficit público (resultado negativo entre as receitas e despesas) a um valor correspondente a 3% do Produto Interno Bruto (PIB), total de riquezas geradas pela economia do país em um ano. A outra meta exige que o total da dívida pública não ultrapasse os 70% do PIB do país. Com deficit de 3,3% e dívida equivalente a 42,4% do PIB, o Brasil estaria, na prática, enquadrado na regra, situação bem diferente da Itália, Grécia e Portugal (veja mais no quadro). No Brasil, as metas fixadas para governadores e prefeitos são móveis e valem para um período de três anos, fixadas anualmente pelo Congresso Nacional na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Isso permite entender o que levou ao descumprimento das regras e estabelecer metas mais compatíveis com o ciclo econômico. ¿As metas fiscais europeias foram descumpridas há anos e não apenas pelos países que estão no epicentro da crise, porque as sanções eram fracas ou inaplicáveis. E eram suspensas quando chegaram aos ricos¿, explica o economista.