Título: Apesar dos avanços, fracasso ronda a rodada de Doha
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 01/11/2005, Opinião, p. A10

Tem sido assim desde o início da rodada Doha - pequenos avanços abrem caminho a novos impasses. As últimas negociações para se evitar outro fiasco na rodada de dezembro, em Hong Kong, não fugiram ao figurino. A União Européia apresentou a Brasil, Austrália, Índia e Estados Unidos o que considera sua proposta final. Provavelmente, ela não é a última proposta e foi considerada um "passo na direção correta". Ainda assim, foi desapontadora. Para contrabalançar eventuais progressos, mais obstáculos aparecem no caminho da União Européia. A França, o mais protecionista dos países agrícolas do bloco, deu um ultimato aos negociadores europeus, ao ameaçar vetar qualquer acordo que não respeite o que foi acordado para a Política Agrícola Comum. A ameaça foi feita pouco antes de a UE apresentar uma proposta de corte de 46% nas tarifas agrícolas e deixou o chefe dos negociadores da zona, Peter Mandelson, em difícil posição. O inesperado ataque à validade das propostas de Mandelson ilustra as sérias desavenças no bloco e explica em grande parte o vai-e-vem da rodada de Doha. Para apresentar ofertas mais palatáveis aos demais países, a UE tem que, por outro lado, se reforçar com enormes garantias para impedir a secessão dos europeus, que invalidaria na prática toda a rodada. É no contexto desse movimento pendular que a UE propôs a redução média de 46% nas tarifas agrícolas, mas endureceu o jogo tanto em relação ao número dos bens que serão considerados sensíveis - 8% dos produtos agrícolas - assim como na magnitude das cotas para sua importação. Tanto EUA quanto o Brasil apontaram corretamente que a redução tarifária será menor que a apontada, algo como 39%, e que ela está distante daquela desejada. Os EUA querem que os europeus podem suas tarifas em 75% e o G-20, um corte médio de 54%. Se do ponto de vista tarifário há um grande e substancial avanço em relação aos 25% ofertados anteriormente, as demais condições a ela acopladas são inaceitáveis e dão alento ao pessimismo. O número de produtos sensíveis é muito alto. Os americanos defendem que ele não passe de 1%, o que já seria suficiente para que os europeus continuem a colocar barreiras de peso a bens nos quais o Brasil é bastante competitivo. Outra decepção foi a oferta de cotas para esses produtos. Os demais países exportadores aguardavam que a quantidade de importados permitida dentro das cotas, com tarifas muito menores ou zero, fosse pelo menos dobrar. A UE, no entanto, acenou com um aumento pífio de 10% a 15%. A UE acrescentou ainda penduricalhos desagradáveis, com o objetivo provável de seduzir o público interno. Ela pede salvaguardas especiais para frear avanços significativos nas importações de carne bovina, frango, manteiga, açúcar e vegetais, boa parte deles já solenemente protegidos por fortes barreiras tarifárias e não-tarifárias. Além disso, os europeus cobraram contrapartidas inaceitáveis em tarifas industriais e abertura de mercados de serviços para suas ofertas na área agrícola. A UE pretende que o Brasil, por exemplo, corte em 75% suas tarifas consolidadas de importação de produtos industriais e de bens de consumo. Com isso, a tarifa máxima aplicada pelo país cairia de 35% para 10%. E a UE partiu para a ofensiva na área de serviços, onde as negociações se encontram em uma virtual estaca zero. Em infra-estrutura, finanças, telecomunicações e demais serviços, os países industrializados teriam de fazer compromissos de abertura em 139 subsetores e as nações em desenvolvimento, em 93. O Brasil rejeita essas condições. O Brasil tem contado com apoio surpreendente dos EUA na questão agrícola. Suas posições estão hoje mais próximas do que antes. "Quer a UE e os EUA gostem ou não, a agricultura é parte central desta rodada", disse Robert Portman, o representante comercial americano. "Será impossível progredir na área de produtos industriais sem avançar em agricultura". Haverá mais três encontros para desobstruir o caminho e impedir que a reunião de Hong Kong, onde dois terços do trabalho deveriam estar concluídos, seja um retumbante fracasso. O cronograma está atrasado e um acordo parece algo impossível. A existência de concessões importantes e o fato de que as negociações não tenham sido interrompidas dão alguma esperança de que nem tudo está perdido.