Título: Propostas para facilitar a caça aos cartéis no Brasil
Autor: Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt
Fonte: Valor Econômico, 01/11/2005, Opnião, p. A10

Condenação de casos estáveis e sólidos deveria ser priorizada

A abertura dos mercados nos anos 90 expôs as firmas a uma maior competição, que redundou em "saídas e entradas" de empresas nos mais diversos mercados. Com isso, o trabalho do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) aumentou e o enfoque dos esforços, nesta década, foi, com muito êxito, introduzir e melhorar seus procedimentos e suas formas de análise sobre fusões, aquisições e joint ventures. Além do elevado número de atos de concentração econômica, passou-se a observar um número crescente de denúncias sobre condutas anticompetitivas, em especial sobre a formação de cartéis. Os esforços desta década, portanto, devem centrar atenção em dois pontos no tocante a estes potenciais casos: 1) criar mecanismos para melhorar os procedimentos e suas formas de análise; e 2) engendrar formas mais céleres de resolver os casos, tendo ou não havido denúncia. Há aperfeiçoamentos a serem feitos e utilizarei o mercado da gasolina para ilustrar tais pontos. Analisando alguns indicadores do SBDC, observa-se que o mercado varejista da gasolina é o campeão entre os casos de denúncias de cartel no Brasil. Em 2004, aproximadamente 62% dos processos administrativos que tramitavam no SBDC diziam respeito a esse mercado e seis casos, em oito no total, sobre cartéis julgados e condenados pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) envolviam empresas do setor. O curioso é que, dentre os casos condenados com sucesso pelo Cade neste mercado, a maioria tinha uma evidência criminal, como, por exemplo, escuta telefônica entre os membros do cartel, uma prova contundente. A evidência econômica nestes casos era frágil, e, portanto, sem tanta relevância. A razão é simples: a estrutura do varejo da gasolina é competitiva, como indicam vários pareceres econômicos da Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae), do Ministério da Fazenda. Mas como é possível haver inúmeras denúncias e condenações sobre a formação de cartel em um mercado que apresenta uma estrutura competitiva? Não é difícil acordar preços, quantidades ou dividir mercados quando a sua estrutura apresenta poucas barreiras à entrada, é pulverizada, tem alto grau de rivalidade e há possibilidade de importação? Sim, é possível haver cartel em mercados competitivos, muito embora seja difícil mantê-lo por muito tempo. Há mercados (como o da gasolina) que, mesmo havendo cartéis, devem ser extremamente instáveis, pelo fato de sua estrutura apresentar características competitivas. Isto quer dizer que seus membros se juntam, acordam preço (por exemplo) para aumentar a sua margem, mas, como são muitas empresas, como há rivalidade entre elas e como o poder de coordenação entre elas é baixo, o desvio ao acordo acaba ocorrendo e de forma rápida. Estes cartéis instáveis acabam gerando uma baixa perda para a sociedade brasileira a longo prazo, refletida pela pequena margem preço/custo, conclusão oposta quando um mercado tem características oligopolistas. A estabilidade dos cartéis, no caso particular da gasolina, por exemplo, deve ocorrer mais facilmente em mercados relativos às cidades menores ou até mesmo a bairros, cujo volume de gasolina transacionado é mais baixo. As conseqüências nocivas para o Brasil, assim, tornam-se menos significativas.

Mercado da gasolina é o campeão de denúncias, mas cartéis em setores oligopolizados geram mais prejuízo à sociedade

Com isso, para que os benefícios das reformas da década de 90 sejam vistos hoje como irrefutáveis, aumentando a probabilidade de condenação dos cartéis ao longo do Brasil, apresento as duas seguintes propostas. Primeiro, a Lei 8884/94 deveria ser alterada para que os casos de cartéis clássicos (hard core cartels - fixação de preço ou quantidade, divisão de mercado ou acordos em licitações) passassem a ter tratamento per se e a tramitar em âmbito criminal, como ocorre nos EUA. Isto certamente desafogaria o SBDC e faria com que cartéis constituídos em mercados mais concorrenciais tivessem um tratamento criminal. Estes poderiam ser coordenados pelo SBDC, até porque administrativamente é o responsável, mas executado pela Polícia Federal ou Estadual, ou pelo Ministério Público. Esse procedimento certamente ajudaria o Poder Judiciário a tomar decisões mais rápidas, no caso em que as partes a ele recorram após condenação pelo Cade, dando à sociedade respostas mais ágeis quanto à punição aos infratores. Segundo, considerando que o SBDC tem recursos escassos, e na impossibilidade de que os cartéis passem a tramitar em âmbito criminal, o Sistema deveria criar um mecanismo capaz de priorizar as buscas aos cartéis, tendo como objetivo principal condenar os que mais prejudicassem a sociedade brasileira, independentemente da existência de denúncias. Um possível guia seria fazer estudos de "perda do bem estar social" para os diversos mercados. A condenação de um cartel sólido e estável deve trazer benefícios maiores para sociedade do que a condenação de cartéis instáveis, onde a guerra de preços ("período de punição" pelo desvio do cartel) é verificada com maior freqüência e por um tempo maior. A condenação de cartéis em setores oligopolizados, com elevadas barreiras à entrada e baixa rivalidade (mercado de cimento, por exemplo) deve gerar ganhos sociais maiores a longo prazo do que a condenação de conluios formados em setores mais concorrenciais (como o da gasolina). Isto não significa que não deva haver punição para estes últimos. Claro que há que puni-los. A proposta é priorizar os casos ou desenhar um outro modelo, diferente do vigente, pois parece haver demasiado esforço do SDBC, o que pode ser interpretado como desperdício de recursos escassos. Seria pertinente colocar em uma "balança" os custos da busca pelo SBDC (que usa recursos públicos pagos pela sociedade) e os benefícios da sua condenação (gerando ganhos para a sociedade), criando-se um critério de priorização das buscas. Afinal, do ponto de vista econômico, a existência destas condutas anticompetitivas, que passaram a ser observadas com maior assiduidade a partir dos anos 90, podem ser consideradas como um dos "custos sociais" gerados pela reforma da década de 90, merecendo ser minimizados. Desta forma, se a década passada foi voltada para a identificação e introdução de métodos analíticos internacionalmente reconhecidos e para a criação de procedimentos mais céleres para avaliar os atos de concentração econômica, esta deveria focar-se em refazer estes mesmos passos para melhorar os instrumentos na caça aos cartéis. É sabido que o SBDC está se movendo com dinamismo nesta direção, por isso este é momento de apresentar novas idéias.