Título: Crise política e foro privilegiado paralisam STF
Autor: Juliano Basile
Fonte: Valor Econômico, 03/11/2005, Especial, p. A10

Justiça Disputas tributárias que somam mais de R$ 40 bilhões foram preteridas por dezenas de ações de políticos

O Supremo Tribunal Federal (STF) está com a agenda sobrecarregada em virtude da crise política, que o levou a adiar o julgamento de inúmeros embates tributários de interesse das empresas e do Fisco, para os quais aguardava-se decisão final ainda este ano. Essa sobrecarga se dá em função de o STF ser o foro privilegiado dos políticos envolvidos na crise. A própria existência do foro tem sido questionada pelos ministros do Supremo. As grandes disputas tributárias, que representam mais de R$ 40 bilhões, seja em perda de arrecadação federal ou em ganhos para os cofres das empresas, foram substituídas, desde o início da crise política, em maio, por dezenas de ações envolvendo o ex-ministro e deputado José Dirceu (PT-SP), o ex-prefeito paulistano Paulo Maluf (PP), o senador João Capiberibe (PSB-AP) e uma longa lista de suspeitos de participação no escândalo do "mensalão" e os inúmeros pedidos de "habeas corpus" pelos depoentes nas três Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs). Na pauta de hoje do Supremo, o principal item em discussão é o processo de cassação do deputado José Janene (PP-PR), um dos envolvidos no "mensalão". No dia 18 de outubro, o STF adiou a definição sobre o pagamento de Imposto de Renda sobre lucros obtidos pelas empresas no exterior. O ministro Marco Aurélio Mello pediu vista do processo e, na semana seguinte, teve de se debruçar sobre um dos casos políticos mais importantes do tribunal: a cassação do mandato do senador Capiberibe. O aumento da Cofins, do pacote de ajuste fiscal de 1998, é outro embate antigo, que vale pelo menos R$ 18 bilhões aos cofres públicos. O julgamento foi adiado, em maio, por pedido de vista do ministro Eros Grau, que é, também, o relator de ação de José Dirceu contra o processo de cassação de seu mandato. Ainda estão sendo aguardadas decisões sobre o aproveitamento de créditos de IPI na compra de produtos tributados sob alíquota zero. A Procuradoria da Fazenda estima que existem pedidos de empresas para compensar o IPI totalizando R$ 18 bilhões em créditos nos últimos dois anos. Há, nessa lista, disputas judiciais importantes relativas ao regime de ICMS, por parte das empresas que fazem negócios no Rio e em São Paulo. Nesse caso, cabe ao STF dizer se o governo de SP está correto ao calcular o valor presumido de ICMS a maior das empresas no regime de substituição tributária. O presidente do Supremo, ministro Nelson Jobim, reconhece a importância do assunto, já votou no processo e tentou colocá-lo em pauta. Mas a discussão está sendo adiada desde o início do ano, seja por pedido de vista de outros ministros ou pelo excesso de assuntos políticos urgentes na pauta. No caso do Rio, cabe também ao STF decidir a sistemática de cobrança do ICMS pelo governo estadual no transporte de derivados de petróleo de um estabelecimento da empresa para outro. Os ministros do STF, porém, estão sendo chamados sistematicamente para resolver as demandas de políticos, cujas ações são urgentes e envolvem prisões e perda de mandatos e, assim, passam na frente das pendências tributárias que estão sendo debatidas há anos na Corte. Como essas não são julgadas, as empresas não sabem como proceder no recolhimento de vários impostos. "As empresas se organizam com base nos parâmetros indicados pelos tribunais superiores", diz a advogada tributarista Fernanda Hernandez. "Mas, hoje, há advogados que não querem mais indicar às empresas a forma de proceder com relação a cobranças de impostos em debate nos tribunais", completou. O motivo são as dúvidas com relação à posição dos tribunais superiores, especialmente o STF, que tem casos importantes para decidir. Na semana passada, o tribunal ordenou que o relatório pela cassação do deputado José Dirceu fosse refeito e concedeu liminar para que o senador Capiberibe não perdesse o mandato. As decisões foram tomadas, respectivamente, por Eros Grau e Marco Aurélio. Ambos possuem processos tributários importantes parados em seus gabinetes (IR das empresas no exterior e aumento da Cofins). Na semana anterior, as duas sessões plenárias do STF haviam sido tomadas por processos de políticos. Na primeira, os ministros consumiram mais de quatro horas discutindo o processo de cassação contra Dirceu. Na segunda, o debate foi a prisão do ex-prefeito paulistano Paulo Maluf e de seu filho. O envolvimento da Suprema Corte na decisão do destino de políticos está incomodando os próprios ministros do tribunal, preocupados com o desgate de imagem. A decisão no processo de Dirceu levou deputados a pedirem o fim da "interferência" do tribunal nos assuntos do Congresso. Alguns parlamentares, como o deputado Júlio Delgado (PSB-MG), relator do caso José Dirceu, criticaram inclusive a forma de indicação dos ministros do STF - feita pelo presidente da República, com aprovação do Senado. A proliferação de ações políticas no STF teve origem em dois fatores. Primeiro, na Lei do Foro (Lei nº 10.628, de dezembro de 2002), que ampliou o foro privilegiado - mecanismo pelo qual parlamentares, o presidente da República e ministros de Estado só podem ser processados perante o Supremo - para as ex-autoridades e para as ações de improbidade. E, em segundo lugar, pela crise política que levou dezenas de parlamentares a recorrerem ao STF. Praticamente, todos os depoentes de CPIs ingressaram com pedidos de "habeas corpus". O ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares depôs duas vezes em CPIs e, nas duas, obteve liminar do Supremo. O publicitário Marcos Valério Fernandes de Souza também recorreu ao tribunal para que não fosse preso e para que tivesse a companhia de seu advogado em seus depoimentos, assim como o banqueiro Daniel Dantas obteve "habeas corpus" antes de depor nas CPIs dos Correios e do Mensalão. Os casos de Valério e Delúbio mostram como os processos políticos estão centralizados no STF. Eles não são parlamentares e não têm foro privilegiado. Mas, como a investigação do "mensalão" envolve parlamentares - e, portanto, pessoas com prerrogativa de foro - seus pedidos acabam no Supremo. O foro privilegiado poderá ser revisto pelo Supremo, pois tem incomodado os ministros da Corte. Em setembro, eles deram a primeira resposta. Por sete votos a três, o STF derrubou boa parte do foro privilegiado. O tribunal decidiu que os ex-ministros, ex-parlamentares e ex-presidentes devem ser julgados pelas instâncias inferiores da Justiça. E também mandou as ações de improbidade administrativa contra as atuais autoridades políticas para a Justiça comum. Restou apenas o foro para os atuais ministros e parlamentares, pois está previsto na Constituição. Numa palestra recente no Congresso, o ministro Carlos Velloso disse que o foro privilegiado foi uma péssima idéia para o tribunal. Segundo ele, os ministros ficaram lotados de processos que poderiam muito bem ser resolvidos pelas instâncias inferiores da Justiça. "O Supremo deve ficar com as grandes teses", justificou Velloso.