Título: Nefasta obsessão pelo marco zero
Autor: Rosângela Bittar
Fonte: Valor Econômico, 16/11/2005, Política, p. A8

Quanto mais o presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursa sobre o que seriam as extraordinárias realizações do seu governo na área social, marca construída para a campanha da reeleição já em curso, mais se aprofunda o fosso entre o dito e o feito. A exortação diária a que se preste atenção de que foi este governo o inventor do sal e do açúcar e que nele está o marco zero de todas as coisas, o evento inaugural, a iniciativa pioneira e exclusiva, jamais inigualada, apenas esconde um insistente caminhar em círculos na Saúde, no Meio Ambiente, na Reforma Agrária, no Saneamento, na Segurança Pública e, principalmente, na Educação. Escolhamos a Educação, por ser esta uma área em que a não política se evidencia. Ao mesmo tempo em que foge da originalidade, a aflição de apresentar algo concreto leva o governo a desfigurar modelos que funcionavam mais ou menos bem, a ampliar a freguesia de alguns programas remarcando-os como inéditos, a mudar os nomes das iniciativas, a inverter critérios de projetos para deles se apossar para efeito de propaganda. O governo Lula, como o do seu antecessor, que criou os instrumentos de financiamento da educação, tem sérias dificuldades para implantar integralmente, nos seus valores determinados, o Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef). Mas antes que consiga realizar o programa, o presidente Lula aprovou sua ampliação para o ensino médio e mudança o nome para Fundeb. O PT, que não havia aprovado o Fundef no Congresso, pressiona pela aprovação do Fundeb sem mostrar como, não tendo realizado o menos, fará o mais. O que se anuncia para o sistema de avaliação em todos os graus do ensino, que realmente não existia no Brasil e começou a ser implantado no governo anterior com total atenção internacional pelo bom rendimento do programa, leva riscos aos avanços obtidos. Trocaram-se nomes e critérios: a avaliação do ensino superior, onde há menos alunos e foi criada segundo o critério universal, passou a realizar-se por amostragem; a avaliação do ensino básico, com suas dezenas de milhões de alunos, que era feita por amostragem, passou a ser universal. O "Enad" é o "Provão"? A "Prova Brasil" é o "Saeb"? O "Enem" é o "Enem"? Nem os especialistas decifram mais esta sopa de siglas das avaliações do Ministério da Educação. Tangido pelas luzes do Congresso, o governo Lula está em plena campanha pela ampliação do ensino básico obrigatório de oito para nove anos, projeto que ainda não foi capaz de rebatizar o ensino fundamental mas será, a qualquer momento. Tornar obrigatório um ano de pré-escola é o que os educadores achariam louvável se tivesse sido a medida implantada com um mínimo de planejamento e estratégia. O resultado é uma balbúrdia nos sistemas públicos de ensino que não se prepararam para cumprir a nova ordem. Para forçar a aprovação de uma reforma universitária ainda não suficientemente debatida, crivada de objeções por todos os lados, o governo decidiu cancelar dezenas de atos que regulavam o funcionamento do ensino superior, levando ao limbo este complexo sistema de ensino tanto na sua esfera pública quanto privada.

Área social sofre a maior ausência de governo

As conseqüências dessa administração por medidas a esmo ainda não são todas visíveis, mas uma já foi até constatada e anunciada pelo próprio governo: a redução da matrícula no ensino básico, revelada no censo escolar de 2005. Uma das razões oficiais teria sido a queda da taxa de natalidade. Nenhuma palavra se deu, no governo, sobre a possibilidade de ser efeito das mudanças do programa Bolsa Escola, uma experiência bem sucedida de um prefeito em Campinas, absorvida, melhorada e realizada amplamente pelo ex-petista Cristovam Buarque (PDT) quando governou Brasília, e adotada pelo governo federal na administração Fernando Henrique Cardoso. O critério essencial do programa era vincular o recebimento de ajuda financeira pela família à matrícula de suas crianças na escola. Ao mudar o nome do Bolsa Escola para Bolsa Família, o governo Lula suspendeu a exigência da matrícula, considerou-a desimportante, só retornando ao critério original sob intensa pressão, inclusive de educadores petistas. Mas a exigência ficou cancelada por tempo suficiente para que muitas matrículas se perdessem. Bem estruturado na propaganda, o Ministério da Educação faz um bombardeio diário para divulgar iniciativas que dão a impressão de intenso movimento administrativo. A qualquer dia que se dê foco, porém, percebe-se a falta de rumo. Em 11 de novembro último, por exemplo: "MEC e Prefeitura de Recife iniciam a segunda etapa do programa Escola que Protege; MEC mostra coleções literárias na Feira do Livro de Porto Alegre; universidades que não cumprem exigências da lei de diretrizes e bases têm 60 dias para apresentar justificativas; seminário discute práticas jurídicas nos cursos de Direito; projeto de expansão do Fies chega a Porto Alegre; escolhida instituição que fará pesquisa sobre consumo de alimentos; encontro na Tunísia discutirá educação à distância; ex-bolsista da Capes conquista prêmio; escolas públicas do Distrito Federal comemoram o Dia Mundial da Ciência; MEC lança cartilha sobre vinhos na Feira do Livro de Porto Alegre". A não ser pela curiosa presença de Porto Alegre na vida do MEC, o que denota que o ex-ministro Tarso Genro continua dominando a máquina do seu sucessor depois de ter varrido dela o rastro de seu antecessor, à época também petista, não se vê nexo de uma política educacional no foguetório. E não foi excepcional aquele dia. Tomemos qualquer outro, um 14 de março de 2005, por exemplo, e lá estão 16 anúncios, entre os quais "material didático indígena é tema de seminário; língua brasileira de sinais recebe sugestões; MEC prorroga prazos de apresentação de documentos do Prouni; educação do campo reúne grupo permanente de trabalho; Ubes defende reserva de vaga nas universidades federais". O governo Lula faria realmente jus ao ineditismo que reivindica na área social se tivesse optado pela única política que pode realmente revolucionar a educação: um programa prioritário de formação e remuneração, elevada e digna, de professores, que atraia os melhores quadros a esta profissão. Este é o problema número um, e nações menos ricas que o Brasil já o enfrentaram. Sem isto não há educação.