Título: Governo abusa de 'retórica petrolífera'
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 16/11/2005, Internacional, p. A11

Se a retórica inflamada pudesse ser aproveitada como uma fonte de energia, a Venezuela estaria bem posicionada para sobreviver à eventual transição para a um mundo pós-petróleo. "Não temos feito outra coisa a não ser arrancar as maiores reservas de petróleo do mundo da boca do imperialismo", declarou recentemente o ministro do Petróleo, Rafael Ramírez, a uma platéia entusiasmada, no Ministério das Relações Exteriores. Na mesma sala, duas semanas antes, um acadêmico radical próximo ao comandante do Exército, general Raúl Baduel, adotou uma postura distinta: "Se temos um discurso antiimperialista aqui, por que estamos dando boas-vindas ao presidente do conselho da Chevron?" Ambos estavam comentando a decisão do governo de obrigar as companhias de petróleo, com pouca antecedência, a celebrar novos contratos e a ingressar num regime tributário mais rigoroso que os acertados na "abertura" petrolífera do país há uma década, quando os campos petrolíferos controlados por estrangeiras passaram a gerar de um terço à metade da produção da Venezuela. Os novos contratos retiram o controle operacional dos campos petrolíferos das firmas estrangeiras e transformam as empresas em sócias minoritárias de sociedades estatais. Para o ministro e para o presidente assumidamente socialista Hugo Chávez, isso marca um retorno à soberania sobre o maior patrimônio da Venezuela. Outros na esquerda, porém, acreditam que os novos e rigorosos termos representam uma traição. Mazhar Al-Shereidah, um economista venezuelano de origem iraquiana, argumenta que os novos acordos livram as companhias de petróleo de todos os riscos. É "tragicômico", diz, que eles estejam recebendo o dito ultimato para aceitar exatamente o tipo de sociedades com as quais concordaram alegremente em outros lugares. Regimes conservadores na Arábia Saudita e em outros países do Golfo Pérsico jamais sonhariam em permitir às empresas estrangeiras obter acesso às suas atividades de prospecção e extração desse modo, diz. Quanto às empresas, elas não estão se manifestando muito. Se elas se recusarem a "migrar" para o novo sistema, no qual a estatal PDVSA deterá uma fatia de 60% a 90%, além do controle operacional dos campos, deverão deixar o país até 31 de dezembro. Até agora, das 32 empresas envolvidas, 22 (em sua maioria, de menor porte) concordaram em mudar, ainda que a forma precisa dos novos contratos ainda não tenha sido definida. As gigantes estão resistindo, porém a aposta é que a maioria acabará assinando. Graças a um aumento planejado nos direitos de exploração, de 1% para 30%, e a um imposto de 50%, que substituiu o de 34%, o Estado a partir de agora passará a receber uma parcela mínima de 82,5% dos lucros, de acordo com Ramírez. Com o petróleo venezuelano sendo negociado a quase US$ 50 o barril - até cinco vezes superior ao preço da época em que os contratos originais foram assinados - e o acesso às reservas remanescentes do mundo sendo vendido a valores muito acima do normal, as companhias provavelmente poderão arcar com as conseqüências. Mais difícil de engolir é uma forma de "negociação" na qual Chávez anuncia pela TV termos do tipo pegar-ou-largar. Chávez está demonstrando pouco apreço pelo império da lei ao rasgar contratos unilateralmente, embora especialistas afirmem que ele ainda teria um pouco mais de espaço de manobra no que diz respeito ao aumento das alíquotas de imposto que incidem sobre o petróleo. A realidade, contudo, é que nos anos recentes, as empresas de petróleo perderam poder de mercado em relação a países com reservas de hidrocarboneto - e o governo de Chávez só está fazendo o mesmo que os demais vêm praticando ao redor do mundo, da Rússia ao norte da África. A maioria dos analistas na Venezuela, independente da sua orientação política, concorda em que já estava mais do que na hora de praticar algum tipo de redefinição dos termos da "abertura" do petróleo; além de terem obtido lucros bem maiores do que se poderia prever quando os contratos foram inicialmente assinados, as petrolíferas estrangeiras foram criticadas por usarem truques contábeis para reduzirem suas contribuições fiscais. Os críticos da esquerda receberam a promessa de que a dependência continuada da Venezuela sobre as firmas estrangeiras e sobre os EUA, na condição de maiores compradores do seu petróleo, é temporária. A Venezuela está oferecendo mais petróleo aos países vizinhos - mas a preços praticamente de graça. Os EUA (onde a Venezuela tem uma distribuidora média) são o país pagante mais próximo e mais óbvio. As estatais de petróleo de aliados como Irã, Brasil e China (juntamente com a Repsol da Espanha) foram contratadas para estimar o petróleo pesado na região do Orinoco, antes classificado como óleo de alcatrão, mas que agora afirmam conter 235 bilhões de barris. Aliados a 80 bilhões de barris de petróleo convencional, isso dá sustentação à pretensão venezuelana de possuir as maiores reservas mundiais. Chávez alegou no mês passado que a Venezuela tinha uma "carta de petróleo poderosa a jogar na mesa geopolítica" e que seria jogada "contra os participantes mais brutais do mundo, os EUA". Enquanto a demanda e os preços do petróleo permanecerem elevados, ele realmente deterá uma carta vencedora. Se e quando os preços despencarem, porém, à medida que novos campos forem sendo incorporados em outros lugares, as desvantagens naturais da Venezuela - seu petróleo é pesado e sulfuroso, e mais caro de extrair - combinadas com o tratamento rude dispensado aos investidores estrangeiros, poderão levar as petrolíferas a simplesmente se retirarem quando Chávez mais necessitar delas para manter a principal fonte de receita do seu país e do seu regime.