Título: "Falta de investimento afeta superávit"
Autor: Claudia Safatle e Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 16/11/2005, Especial, p. A14

Entrevista Ciro Gomes diverge da política econômica mas diz que o momento agora é de coesão interna

Será provado que a aliança liderada por Lula é podre eticamente porque vestal é essa coalizão PSDB/PFL? " Vamos guerrear, mas na guerra tem a Convenção de Genebra porque a bestialidade humana tem que ser domada" Integrante do núcleo de coordenação do governo desde o início da crise, o ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, está preocupado com a deterioração do quadro político, com a situação de fragilidade do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e com a "guerra de extermínio" em que se engalfinham oposição e governo. Resolveu procurar os líderes do PSDB e do PFL para uma conversa em busca de "limites" que protejam valores da democracia". Nos últimos dias, Ciro procurou líderes da oposição para conversar. "Disse a eles: 'Vamos guerrear, mas na guerra tem a Convenção de Genebra', contou o ministro. O "desencanto" com a política, alertou, pode levar "a uma predisposição da população a aventuras personalistas e simplificadoras, normalmente fascistas". Melhor alternativa seria a crise política resultar "num ceticismo fecundo, numa maior exigência por parte das pessoas. Uma situação em que o povo não acredita mais em mistificação de nenhuma natureza e passa a escolher os dirigentes com um pouco mais de exigência". Ciro reconhece os graves erros do PT, advoga de forma intransigente a apuração e a punição dos malfeitores, mas avalia que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está saindo íntegro da crise e como favorito para a reeleição. O ministro faz objeções à política macroeconômica - "É importante o conceito de superávit, sem dúvida, mas é preciso colocá-lo na dinâmica em que o desinvestimento pode ser anti-superávit" - e a áreas importantes das políticas públicas, como educação e saúde, mas sustenta que na economia, o governo Lula está melhor do que o anterior em todos os indicadores. "Todos", enfatiza. No quesito ética, admite, "estamos levando uma surra no momento", mas não reconhece, nesse campo, autoridade aos adversários. "Minha pergunta é: 'Povo brasileiro, é razoável que se produza uma alternância de poder de tal repercussão, que provará que todo o canto de centro esquerda liderado pelo Lula é podre eticamente porque legítimos vestais são essa coalizão PSDB de SP/PFL?". Ele mesmo responde: "Não é". A seguir, a entrevista ao Valor: Valor: Qual é a sua visão da crise? Ciro Gomes: A crise tem um componente real diante do qual quero crer que, mesmo com muito sofrimento e na velocidade que se pode criticar, o governo está dando a resposta possível. O componente real é que uma fração da direção antiga do PT aparentemente trocou os pés pelas mãos ao se esforçar para resolver problemas de financiamento de campanha. É o que já parece ficar claro. E isso chocou muito a sociedade brasileira por uma circunstância atípica: o PT, majoritariamente de boa-fé e inexperiência, e minoritariamente por oportunismo do teatro eleitoral, deixou boa parte da sociedade brasileira acreditar que uma vez assumindo a máquina do poder, se instalaria um governo de anjos. Boa parte das pessoas acreditou nisso de boa fé. O PT deveria ter prometido que, dada a ocorrência de corrupção, a conseqüência será a punição. O PT está entregando isso. É sofrido, lento. O PT tirou toda a sua direção, o governo afastou 59 pessoas à menção dos nomes. Valor: Mas, o governo se esforçou para que as CPIs não fossem instaladas e, agora, para que seus prazos não sejam prorrogados. É aceitável? Ciro: Isso é inerente a governar. CPI é um instrumento de oposição. Na medida em que o governo determinou que os instrumentos regulares de apuração entrassem em campo, sabíamos que não tínhamos o direito de ser bobos, que aquilo viraria um palco para, em cima de dados reais, se fazer precipitadamente um embate político-eleitoral. Todas as informações concretas foram levantadas pelos instrumentos regulares. Os fatos e os esclarecimentos não foram produzidos pela CPI. Foi a imprensa, o governo que produziu. As punições podem ser criticadas, a severidade, a lentidão, mas também para quem tem consciência jurídica é duro ver prosperar no país, por uma conveniência absolutamente perigosa, que determinados princípios de civilidade, universalmente estabelecidos, sejam subvertidos a pretexto de uma indignação popular justa, mas de muito oportunismo daqueles que a manipulam no mundo político. Valor: A que princípios aceitos o sr. se refere? Ciro: Princípios como in dubiu pro reu; assegurar o contraditório à defesa; ao acusado se presume a inocência até que se prove o contrário; o ônus da prova cabe ao acusador. O José Dirceu está dizendo: "Eu sou inocente, não sou chefe de quadrilha". Ele pode estar mentindo. Qualquer um de nós pode estar mentindo, mas os princípios aplicados ao caso obrigam os acusadores a produzir evidência e não ilação. Senão, na política o nome disso é fascismo. Agora, há outro ângulo na crise. Valor: Qual? Ciro: É uma violenta e radicalizada luta pelo poder. Nunca entendam esse ângulo como eu estar querendo dourar a pílula do PT. O PT só tem um jeito: esclarecer, apurar, indicar culpas e punir. Mas é hora de chamar a atenção da sociedade brasileira para esse segundo ângulo. Vamos prestar atenção com muito cuidado por causa dessa precipitação radicalizada, com caricaturas como "vou bater no presidente, vou envolver o filho do presidente..." Isso é chantagem. Ou o filho do presidente não cometeu ilícito nenhum e não pode ser usado como instrumento de chantagem, ou cometeu e tem que responder como qualquer brasileiro às penas da lei. Ou o Palocci não cometeu nada errado e não tem que ser chantageado ou, tendo cometido, tem que responder como qualquer um de nós e acabou. E aí, tem um ângulo mais constrangedor, o PSDB e o PFL fizeram, em cima do dado real da crise, um arraso. Valor: Como agiram os partidos de oposição? Ciro: Puseram o governo por dois a três meses numa situação de grande desgaste. A partir daí, quando conseguimos dimensionar a crise e ficou claro que não iríamos contemporizar, a oposição fez os cálculos e o Lula restou favorito (à reeleição) desse violento ataque. Restou íntegro como pessoa, liderança e símbolo nesse campo de valores que a chamada centro-esquerda quer representar no Brasil. E a oposição chegou à conclusão de que, apesar de ter produzido um grande prejuízo, não foi eficaz para a antecipação do debate eleitoral. Valor: Na sua avaliação, por que não conseguiu? Ciro: Porque no debate eleitoral, o conjunto da sociedade forma seu juízo a partir de um conjunto de valores: econômico, governança (políticas sociais, de infra-estrutura etc.) e ética. No campo da economia, o Lula ganha em qualquer um dos indicadores. Não sou o mais feliz dos membros do governo com a equação macroeconômica, mas o fato é que ganha tudo: contas externas, média de crescimento, criação de emprego, salário médio real, valor do salário mínimo, nível de reservas cambiais. Valor: E nos demais temas? Ciro: No item governança, quem transita pelas estradas está aborrecido. Quem gostaria de ter um padrão de saúde pública minimamente digno, está aborrecido. Quem imagina que a educação tem que sofrer uma profunda transformação, está aborrecido. Tudo isso é verdade. Mas, quando afunilar o processo político, a coalizão PSDB/PFL de novo perde para nós em todos os indicadores da governança. Eles entregaram o país com um apagão e nós montamos um novo modelo energético. O Fernando Henrique fez o Bolsa Escola, mas vamos para a escala e eficácia. Nós estamos hoje, com o Bolsa Família, com nove milhões de famílias com padrão médio de R$ 96 reais. Valor: Nesse jogo, qual é o placar? Ciro: Estamos levando uma surra neste momento. Mas minha pergunta é: 'Povo brasileiro, é razoável que se produza uma alternância de poder de tal repercussão, que provará que toda a centro-esquerda liderada pelo Lula é podre eticamente porque legítimos vestais são essa coalizão PSDB de SP/PFL?' Não é. Se têm outro projeto para o país, na economia, na governança, vamos discutir. Agora, por ética, não! Valor: O sr. reconhece ter sido um crítico da bandeira única do PT, que era a ética na política? Ciro: O prejuízo é definitivo. Preocupo-me com o risco de um desencanto muito grande na política como linguagem. Tenho conversado sobre isso com os próceres da oposição, que respeito e por quem tenho afeição. Valor: O sr. recebeu missão do presidente para dialogar com a oposição? Ciro: Não. É uma iniciativa minha, pessoal. Os líderes da oposição se queixam porque o governo, quando adquire um mínimo de oxigênio, parte para o ataque. Você quer o quê? O plano deles é que o Lula se imolasse de véspera. O que eu lamento é que o Lula não tenha reagido com mais virulência desde o primeiro momento. Não sou o melhor conselheiro para essas horas. Há a extrapolação exorbitante e selvagem, é guerra de extermínio! Valor: Com quem da oposição o sr. esteve? Ciro: Estive com o Jorge Bornhausen (presidente do PFL) e ponderei se ele não acha que está um tom acima do razoável para um Brasil que tem o dia seguinte. Fui falar com o Tasso (Jereissati), o Arthur Virgílio (líder do PSDB no Senado), o governador Aécio Neves, com o Geraldo Alckmin. Disse a eles: 'Vamos guerrear, mas na guerra tem a Convenção de Genebra porque a bestialidade humana tem que ser domada'. Valor: A Convenção de Genebra, nesse caso, é exatamente o quê? Ciro: Limites, regras que protejam os valores da democracia. Esse desencanto que a população está sentindo com a política pode descair para uma coisa muito ruim. Valor: Para o quê? Ciro: A negação da política. Isso predispõe a população a aventuras personalistas e simplificadoras, normalmente fascistas. Poderíamos ter outra coisa, em vez disso. Um ceticismo fecundo, por exemplo, uma maior exigência por parte das pessoas. Uma situação em que o povo não acredita mais em mistos e passa ser mais exigente na escolha dos dirigentes. Valor: Não fica mais fácil agora eleger pessoas do tipo "rouba, mas faz"? Ciro: Depende. Se a conseqüência do desencanto for a descrença no sistema representativo, aí vai. Numa situação em que a melhor parte da sociedade, que é a mais sensível a esses valores (da ética), se desencanta, incrementam-se os votos nulos e brancos e os pragmáticos na política e na sociedade terão prevalência. Está nas mãos do conjunto da sociedade guiar essa crise. Estou na estrada há 30 anos. Nunca vi uma crise ser conduzida por "anões". Valor: Como assim, anões? Ciro: Anões morais, políticos, intelectuais. No impeachment do Collor, estavam de um lado Lula, Miguel Arraes, João Amazonas, Leonel Brizola e outros, e do outro, Jorge Bornhausen como ministro, Marcílio Marques Moreira, gente de alto nível. Na transição do Tancredo, houve todo aquele embate simbólico de rua, de mudança. Mas, por trás, havia toda uma frenética rede de entendimentos garantindo a tranqüilidade do país, o equacionamento preventivo de riscos, de rupturas, que pudessem aparecer na coalizão de forças. Hoje, é essa meninada obcecada em aparecer na televisão. Valor: Como superar a crise? Ciro: Só tem um jeito: concluir as apurações, qualificá-las e apontar os culpados. Eles (a oposição) não querem. Quem quer isso somos nós. Eles trocam de acusação e as vão abandonando no meio do caminho porque é um jogo de "jabs", pequenos socos continuados na altura do fígado, do baço, que vai cansando. Valor: Mas, o presidente confessou que seu partido cometeu um crime - o caixa 2 - e tentou transformar isso num crime menor... Ciro: Naquela entrevista na França, o presidente disse que isso é muito ruim, embora seja algo que todo o mundo faz. Talvez, a generalização seja impertinente, mas que aqui é uma prática utilizada em larga escala, é. Valor: Isso diminui a gravidade do crime? Ciro: O presidente não diminuiu. E repetiu isso agora. Em qual quadra da História, o presidente da República teve tempo ou paciência ou desceu da majestade do seu cargo para saber como está funcionando a cozinha do financiamento das campanhas? Caixa 2 é ruim e ponto. É desagradável, ilegal e ponto. Punições têm que ser aplicadas. O fato de os outros fazerem não absolve os nossos, mas tira pelo menos a autoridade moral e a coerência da oposição para aproveitar politicamente a repulsa da sociedade ao caixa 2. Valor: Há risco de retorno autoritário? Ciro: Não porque não há força hegemônica organizada postulando isso. O que vamos ter é uma política fraca. O Rio de Janeiro está se inviabilizando porque, lá, a política foi tão desqualificada que as pessoas estão votando em um para o outro não entrar. É isso que estão querendo fazer com o Brasil. Basta ver o que acontece hoje na América do Sul - Bolívia, Equador, Colômbia, Venezuela e Peru. Mesmo a Argentina teve um momento em que as pessoas perguntavam quem queria exercer a Presidência da República. Queremos isso para o Brasil? Como o PT e o Lula existem, todas essas dramáticas tensões sociais urbanas e rurais se referiram ao calendário eleitoral. O senador César Borges assinou petição, no começo da crise, propondo a extinção do PT. Imagina... Isso é o que chamo de política de extermínio. Valor: O PT não sofre hoje exatamente o mesmo tipo de oposição que fez no passado? Ciro: Claro. Eu disse ao Bornhausen que compreendo a situação dele. Parte do calor excessivo que o levou a dizer 'vamos acabar com essa raça' não é racismo, como se tentou extrapolar de forma grosseira. É porque um irmão dele foi caluniado pelo PT na CPI do Banestado. Nunca vi o Tasso Jereissati, meu amigo-irmão, um cavalheiro, deslizar na linguagem, como agora, quando disse que 'Lula é o rei do trambique'. As frases dele estão azedas porque um picareta desses aí exacerbadamente petista pegou a mãe do Tasso e envolveu numa suspeição de dólar (na CPI do Banestado). Valor: Mas foi o PT que fez isso. Ciro: E o que o país tem com isso? Então, quer dizer que os grandes vícios do PT agora são replicados como legítima defesa macabra? Quando o PT propôs o 'fora FHC', escrevi um artigo contra. Valor: Como o sr. vê a situação de Palocci, que sofre mais acusações do que José Dirceu? Ciro: Acusado de quê? Valor: De sua prefeitura em Ribeirão Preto ter recebido propina. Ciro: Ninguém acusou o Palocci. Falam do Buratti e não sei mais de quem estava por ali, mas ninguém chegou e disse: 'O Palocci é responsável por isso ou por aquilo'. Esse conjunto de referências ao Palocci é da primeira administração dele como prefeito de Ribeirão Preto. Onde estava essa sanha ética toda que não lembrou disso quando começou o governo? Valor: E por que Palocci não sai do noticiário? Ciro: Vocês não perceberam a coerência disso? O grande embate exterminador do Lula não foi eficaz. Agora, trata-se de abalar a economia. A economia está sob gestão firme do presidente da República e não falta pressão, minha inclusive, para que as coisas sejam diferentes. No meu caso, um pouco diferentes. A CNBB, o MST, a CUT, a Fiesp, o Iedi, estão dizendo outra coisa e o presidente está firme, agüentando porque acredita que esse é o tamanho do passo que podemos dar. Valor: A política econômica pode sofrer sofrer uma inflexão? Ciro: Com a crise, a margem (de mudança) se dissipou. Com os hunos na porta, agora é coesão total para enfrentá-los e levar o julgamento para a população brasileira. Num segundo mandato, se o presidente postular e a maioria do povo brasileiro concordar, será constituída uma avaliação de tudo o que foi feito. E a avaliação é positiva, salvo este momento constrangedor. Valor: Que margem é essa? Ciro: Nos três grandes fundamentos (juros, câmbio e superávit primário), que achamos por bem não revogar, há espaço. No superávit, temos uma margem muito folgada - um superávit de 6,3% do PIB na boca do caixa. É importante o conceito de superávit, sem dúvida, mas é preciso colocá-lo na dinâmica em que o desinvestimento pode ser anti-superávit. Valor: De que forma? Ciro: Se o governo, por ausência de investimento, deixa faltar energia, faz uma economia que no fundo provoca um desinvestimento (privado) que vai reduzir o PIB e, portanto, incrementar a relação dívida/PIB. Eu defendo a resultante da política econômica sendo contra. Valor: Por quê? Ciro: O espaço agora não é mais esse. Se tivéssemos um espaço sereno, equilibrado, estaríamos aprofundando uma discussão fraterna e leal para, na margem, melhorar as coisas. Sair do defensivismo. Mas na hora em que somos acossados de fora para dentro pelos bárbaros, com essa linguagem selvagem, nossas diferenças têm que sumir.