Título: Comédia soturna
Autor: Eliana Cardoso
Fonte: Valor Econômico, 17/11/2005, Brasil, p. A2

"O Mercador de Veneza" está nos cinemas de São Paulo, com Al Pacino no papel de Shylock, o judeu vilão. Figurantes saídos de telas pintadas por Velázquez, Rembrandt e Caravaggio se misturam às personagens de Shakespeare e dão vida à representação da Europa no século 16. Michael Radford é o diretor da tragicomédia do mercador que hipoteca meio quilo de sua própria carne ao judeu de Veneza. Radford tenta contornar o problema do anti-semitismo da peça de Shakespeare com algumas frases que antecedem o filme e introduzem o contexto da história: Veneza, 1596. Os judeus vivem em guetos e são hostilizados. Bassanio, um nobre quebrado, pede a Antônio, rico mercador e seu melhor amigo, um empréstimo para viajar em conquista do amor da princesa Pórcia. O dinheiro de Antônio está investido no comércio marítimo e, por isso, ele toma um empréstimo de Shylock, o judeu em cuja cara cuspira em praça pública. O coração do filme é a cena do tribunal de justiça, onde a crueldade se exibe de muitas formas. Shylock tem uma nota promissória legal que lhe permite cortar meio quilo da carne do corpo de Antônio. Cabe ao governante de Veneza julgar e decidir. Palocci também se chama Antônio e também é vítima da cobrança de compromissos passados. Mas aqui terminam os paralelos entre o ministro e o mercador. As situações dos dois Antônios são diferentes, mas igualmente complexas. A dificuldade leva Lula a chafurdar em confusão mental, assim como o governante de Veneza, que não sabia o que fazer. Lula precisa escolher entre a política de Palocci e a de seus rivais, mas deixa o tempo passar e apenas ensaia uma defesa tímida de seu ministro. O duque de Veneza também vacilava diante de uma decisão difícil. Cumprir a lei e deixar que Shylock corte e pese um pedaço do peito de Antônio? Descumprir a lei e ver ameaçada a legitimidade do comércio? Sob o disfarce de advogado, Pórcia chega ao tribunal e declama a famosa ode à clemência cristã. Mas não existe abrigo que nos proteja de compaixão como a dela. A princesa egocêntrica, mimada e sedutora conduz Shylock à armadilha que preparara com cuidado. Shylock pode cortar o pedaço de carne que lhe pertence no peito de Antônio, diz ela. Mas outra lei mais antiga proíbe ao judeu derramar uma única gota de sangue cristão. A partir daí, na construção da derrota do agiota, vira contra ele seu próprio senso exacerbado do direito de posse. E ainda aproveita a ocasião para transferir riqueza a seus protegidos. Pórcia, o verdadeiro centro dessa comédia soturna, não beira a desumanidade de Antônio, o bom cristão, que concede a Shylock o perdão da pena de morte, desde que ele se converta e escolha a aposentadoria. Como cristão-novo, não poderá cometer o pecado da usura. Antônio vence. Mas nada lhe resta senão o dinheiro. Shylock perde até mesmo sua identidade judia. Shakespeare tampouco escapa ileso, diz Harold Bloom, pois a criatura se vinga de seu autor ao sucumbir: Shakespeare, ao fazer Shylock preferir o cristianismo à morte, destrói a consistência dramática de seu personagem. Não há vitoriosos no "Mercador de Veneza".

Com Palocci fraco, Lula pode virar um Chávez

Tudo indica que também não haverá vitoriosos entre os que hoje disputam o poder no Brasil. Apenas a derrota de eleitores enganados. O presidente diz que a responsabilidade é dele, mas parece incapaz de enfrentar escolhas e administrá-las. Sem governo, a crise política solapa o bom funcionamento da economia, mesmo que a aparente calmaria do mercado financeiro iluda os apressados. Não é que o mercado financeiro não se deu conta da gravidade da crise política. Enquanto houver oportunidade de lucro e garantia de pagamento no curto prazo, o mercado não se assusta nem mesmo com Hugo Chávez, que ameaça e destrói, pouco a pouco, as bases sobre as quais a economia da Venezuela poderia vir a funcionar no futuro. Também no Brasil a incerteza e a volatilidade solapam a possibilidade de desenvolvimento sustentado. Com Palocci enfraquecido, surge a hipótese sombria de que Lula venha a se converter num Chávez na campanha de 2006. Pois podemos esperar qualquer coisa de um presidente que se gaba e se contradiz cada vez que abre a boca. No feriado de 15 de novembro, dia da proclamação da República, o mais radical dos colunistas (Roberto Mangabeira Unger, na "Folha de S. Paulo") uniu-se aos formadores de opinião mais conservadores em crítica contundente ao presidente. No dia seguinte, a voz de Palocci tentava apontar razões para deixarmos de lado o pessimismo. A política não passa de um jogo de interesses? Com certeza. Mas continuo a sonhar com políticos engajados na conquista de leis simples e transparentes que, respeitadas, haveriam de contribuir para o bem público. Combinar com os russos? Os economistas reclamam, com razão, que os decretos-leis, medidas provisórias e regulamentos, que compõem a rede de proteção contra distorções de um Estado corporativo e mercantilista, perpetuam privilégios e entravam o desenvolvimento. Reformar implica simplificar a legislação tributária. Rever as leis que condicionam o fracasso das firmas e favorecem um grupo em detrimento de outro. Reduzir a intervenção do Estado. A outra solução seria fazer o desenvolvimento por decreto. Na Rússia, em 1697, o rei Pedro I modernizou o país ao passar uma lei que obrigava os nobres a rasparem as barbas e usarem roupas ocidentais. Mustafá Kermal também modernizou a Turquia em 1925 com uma reforma do guarda-roupa. Uma lei proibiu o barrete vermelho e instituiu o uso do chapéu panamá. Jânio Quadros tentou um truque parecido quando instituiu seu terninho de safári e proibiu as brigas de galo. Não deu certo. Mas vale tentar de novo. Lula pode decretar o uso obrigatório do boné verde-amarelo com a inscrição: "O Brasil que dá certo". Minha esperança não morre.