Título: China, uma ameaça e oportunidade para Bush
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Fonte: Valor Econômico, 18/11/2005, Internacional, p. A11

Nunca é fácil lidar com uma superpotência emergente. A China talvez não justifique inteiramente esse epíteto, ainda, e é possível que nunca o venha a merecer. Mas seu rápido crescimento econômico, sua enorme população, sua demanda por recursos naturais e sua diplomacia enérgica estão colocando perguntas delicadas aos políticos do mundo inteiro. A China pode não ser outro Império do Mal (como o ex-presidente Ronald Reagan se referiu à extinta União Soviética), mas continua sob um regime repressivo de partido único. As perguntas são: pode a China ser mudada ou o mundo precisará simplesmente abrir espaço para a China como ela é? Será que o que os chineses denominaram "ascensão pacífica" será mesmo assim, ou a China poderá assumir um caráter mais antagonista? Há muito tempo esse debate tem obcecado os vizinhos da China, especialmente Taiwan. Como o presidente George W. Bush descobrirá em sua atual viagem à Ásia, leais aliados dos EUA, como Japão, Coréia do Sul e Austrália, já estão sentindo a força magnética de um novo pólo geopolítico. Mas o bafo do dragão está sendo sentido bem mais longe. São chineses, atualmente, os investimentos que mais crescem na África. A indiferença chinesa aos direitos humanos deu a suas empresas uma vantagem em lugares díspares quanto Uzbequistão, Zimbábue, Sudão e Irã. No entanto, o país mais capaz de influenciar a China é ainda a outra grande potência na Ásia, os EUA. Neste fim de semana, Bush, atordoado com os problemas domésticos, chega a Pequim sob pressão do Congresso para "ser duro" com seu anfitrião, o presidente chinês Hu Jintao. Mas ele precisa ser duro em relação às coisas certas, e muitas vozes em casa estão sugerindo exatamente as coisas erradas. O medo da China é profundo nos EUA. Esquerda, sindicatos e democratas berram contra a terceirização de empregos na China. Como o déficit comercial com a China deverá explodir para mais de US$ 200 bilhões neste ano, muitos setores aderiram ao clamor, esperando subsídios e protecionismo. E os defensores do "pau na China" estão fazendo progressos. Em julho, a insistência americana ajudou a persuadir os chineses a desatrelar sua moeda, o yuan, do dólar, e ancorá-lo a uma cesta de moedas, promovendo, assim, uma valorização de 2% (embora isso não tenha impedido um senador democrata, Charles Schumer, de ameaçar com a aplicação de uma tarifa de 27,5% se o yuan não subir ainda mais). Em agosto, a estatal China National Offshore Oil Corporation (CNOOC) desistiu de tentar adquirir a Unocal, uma empresa petrolífera americana de porte médio, depois que a Câmara decidiu, por 398 votos contra 15, pedir a Bush que revisse o acordo. E, na semana passada, os chineses concordaram em firmar um acordo no setor têxtil permitindo que os EUA prolongassem suas quotas sobre as exportações de produtos chineses para os EUA até 2008. Tudo isso poderia ser visto como uma repetição da insensata japanofobia da década de 80. Mas, embora aquelas atitudes fossem baseadas apenas em preocupações econômicas, o sentimento anti-China tem uma base muito mais ampla: neoconservadores moralistas, que se opõem à política americana em relação à China desde que Nixon iniciou a "conciliação", na década de 70; o pessoal de defesa, que receia um crescimento armamentista da China; e fundamentalistas cristãos, revoltados diante do caráter ateísta repressor chinês. É fácil ver porque Bush se sentirá pressionado a exibir semblante preocupado nas fotos em Pequim. Apesar disso, ele deveria manter-se firme contra as reações sinófobas instintivas, especialmente no caso do comércio. A defesa da imposição de tarifas antidumping, de proteção contra o yuan subvalorizado etc., tudo isso parte da idéia politicamente conveniente, embora economicamente ignorante, de que importações são ruins e exportações são boas. Entretanto, mesmo segundo essa lógica distorcida, é um erro culpar a China pelo déficit em conta corrente americano. A maior parte do aumento do déficit comercial americano ao longo da década passada veio da relação com outros países. E o desequilíbrio americano tem muito mais a ver com uma carência de poupança americana do que com as importações de mercadorias da China. Isso não significa que Bush não deva ser duro em alguns temas. É correto restringir a venda de armamentos a regimes que desrespeitam os direitos humanos de seus próprios cidadãos, e pressionar a China a abrir mais seu mercado e reprimir a pirataria de software. Mas a China não deveria ser transformada n um bode expiatório de todos os males de origem doméstica da economia americana. Para seu crédito, Bush até agora ignorou grande parte do clamor no Congresso por punições à China. Mas silêncio não basta. Ao deixar de defender e justificar vigorosa e publicamente a abertura de mercados, Bush estará acumulando problemas para o futuro. O silêncio da Casa Branca no caso da CNOOC fez com que um negócio comercial perfeitamente razoável não se concretizasse devido a razões políticas infundadas. O acordo sobre têxteis na semana passada não foi o que desejavam os sulistas no Congresso; mas o fato de Bush não ter encarado os barões do algodão em nada contribuirá para deter as pressões de outros setores. Até agora, coube ao secretário-adjunto de Estado, Robert Zoellick, explicar como a China pode se tornar um "parceiro responsável" no sistema internacional. Bush deveria aproveitar sua visita para desenvolver esses argumentos construtivos e enfrentar as vozes anti-China mais publicamente, não só tendo em mente o comércio com a China mas também para enfatizar o compromisso dos EUA para com o livre comércio em geral. Fora do campo econômico, Bush precisa equilibrar dois imperativos por vezes antagônicos. O primeiro é continuar a empregar a força americana para estimular os líderes chineses a comportarem-se melhor em relação a seus vizinhos e com seus próprios cidadãos. A China precisa ser persuadida a abandonar seu acúmulo de mísseis diante de Taiwan e a parar de atiçar o sentimento nacionalista contra o Japão. Afinal de contas, o regime, às vezes, escuta. Quando seu Congresso Nacional do Povo aprovou, em março, uma resolução ameaçando Taiwan de invasão, a onda de indignação resultante no Ocidente aniquilou a esperanças de Hu de que o embargo à compra de armamentos, imposto à China depois do massacre na Praça da Paz Celestial em 1989, seria cancelado na Europa. Desde então, a China vem cortejando os políticos de Taiwan - ainda que os de oposição - e baixou o tom de seus ataques contra o presidente taiwanês, apesar de abominar o apoio dele à independência da ilha. Bush também tem o dever de pressionar a China no capítulo de seu histórico sistematicamente indescritível de abuso dos direitos humanos - apesar de a própria ambivalência americana quanto à tortura e outros senões na prisão iraquiana de Abu Ghraib e na de Guantánamo terem contribuído para ser mais fácil ignorar os reparos do presidente americano. O segundo imperativo é que os EUA encontrem uma maneira de trabalhar harmoniosamente ao lado de uma China que está apenas começando a encontrar seu caminho de grande potência. Nem todo encontro tem de ser tratado como enfrentamento entre rivais. A China diz desejar tornar-se uma grande potência do mesmo modo que os EUA predominantemente o fizeram: não por saques e conquistas, mas por meio de comércio e cooperação com outros países. Muito de diplomacia regional chinesa é proveitosa. A China está ajudando - embora sem dúvida pudesse fazer mais nesse sentido - a persuadir os norte-coreanos a abandonar suas armas nucleares. Tendo, no passado, mantido seu isolamento, a China tornou-se recentemente adepta da participação em instituições. Os chineses estão defendendo um acordo de livre comércio que interligaria as dez economias do Sudeste Asiático com três economias do Nordeste Asiático (a própria China, mais Japão e Coréia do Sul). O fato de que a China é hoje o maior parceiro comercial de muitos desses países reflete tato e força. Diversamente dos EUA, que freqüentemente não corteja seus aliados, a China empenha-se pacientemente para cultivar amigos. Em 2003, por exemplo, Bush foi à Austrália por apenas 18 horas. No dia seguinte, Hu chegou e passou três dias lá. Se o leitor tem uma visão fatalista sobre como a história se desenrola, a grande potência que são os EUA deverão algum dia colidir com a grande potência que a China está destinada a ser. Mas não há necessidade de ser tão pessimista. Muita coisa dependerá de quando e como o Partido Comunista Chinês perderá seu monopólio da poder político. Pois, enquanto a China continuar totalitária, não poderá haver um verdadeiro encontro de mentalidades com os EUA. Enquanto isso, China e EUA têm de cooperar. E parte da missão de um presidente americano é impedir que os estreitos interesses protecionistas domésticos introduzam um elemento de turbulência num relacionamento que, se encaminhado corretamente, pode contribuir em muito para a paz e a prosperidade da humanidade.