Título: Um plano fiscal para dez anos
Autor: Fabio Giambiagi
Fonte: Valor Econômico, 21/11/2005, Opinião, p. A11

A recente proposta do ministro do Planejamento, de um plano fiscal de dez anos, tem sido objeto de críticas bastante severas. Os reparos à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) são de que a medida, primeiro, seria rudimentar; segundo, implicaria um corte de gastos; e terceiro, não levaria em consideração as variáveis políticas e sociais que são parte do contexto de uma sociedade democrática. Tais críticas, porém, não são válidas. Faz parte do embate político atribuir ao adversário questionado por alguma coisa posições que ele não defende. A proposta não representa uma redução do gasto público. Ela se destina, sim, a promover uma realocação da despesa e a diminuir a sua velocidade de crescimento. Com a economia se expandindo nos próximos anos, seria possível diminuir a relação gasto/PIB sem reduzir o numerador. O gasto público primário do governo central cresceu mais de 8% em termos reais em 2004 e, este ano, tem crescido a uma velocidade similar. Assim, o Brasil está perdendo uma oportunidade histórica de resolver de uma vez por todas o problema do elevado déficit público, que tem nos acompanhado desde o começo da estabilização. O que está em discussão é se haverá ou não algum tipo de restrição à continuidade desse processo. É preciso colocar um ponto final na expansão fiscal para poder aspirar a uma maior taxa de crescimento da economia a longo prazo. Insisto naquilo que já citei aqui: a despesa primária do governo central era de 16,5% do PIB em 1994 e deverá ser de 22% do PIB este ano. Qual é o limite? Esse processo se caracterizou por três elementos. Primeiro, foi financiado por um pesado aumento da carga tributária. Segundo, como foi concentrado nos gastos correntes, coincidiu com o achatamento do investimento. E terceiro, foi acompanhado pelo aumento das vinculações. Estas representam a salvação de quem "pega uma carona" na rubrica à qual o item fica vinculado, mas têm efeitos danosos para os setores que ficam de fora. Diante disso, há duas saídas. Uma é vincular mais, o que acabará comprometendo 100% da receita. A outra é vincular menos, permitindo que as rubricas hoje garantidas continuem crescendo, porém menos do que o PIB, reduzindo a proporção entre esses gastos e o produto e abrindo espaço para um maior investimento público e para o desafogo de outras despesas. No modelo atual, teremos aumentos contínuos do gasto para os setores que lideraram o crescimento da despesa nos últimos 11 anos - e estradas esburacadas, população indefesa diante do aumento da violência, febre aftosa no Centro-Oeste porque não há recursos para o controle de fronteiras nem para a fiscalização sanitária etc. Será um futuro sombrio. Nesse caso, o Brasil continuará flertando com a mediocridade. O programa fiscal elaborado pelo Ministério de Planejamento é a iniciativa mais completa que o poder público formulou no governo Lula para dar conta desses desafios. Não é rudimentar, porque foi minuciosamente discutido com diversos técnicos do governo, cada um deles com 10 a 20 anos de dedicação ao serviço público. Não é desqualificado, porque é antecedido de uma longa exposição de motivos que se destina a explicar a razão e a importância das medidas propostas. É uma proposta concreta, porque a PEC está pronta para ser enviada ao Congresso. E leva a política em consideração, porque atende ao que está colocado na plataforma partidária que elegeu o presidente Lula nas eleições de 2002, onde, no item 43, afirma-se que "nosso governo desenvolverá um programa de reformas institucionais, ouvindo as sugestões e negociando as divergências com toda a sociedade. É com esse espírito nacional e democrático que o novo governo trabalhará ... para aprovar as reformas necessárias ao Brasil". O Ipea foi convocado para ser parte desse esforço coordenado pelo Ministério de Planejamento. O papel da instituição também é o de fazer simulações, como se faz, aliás, em qualquer lugar do mundo, uma vez que é inimaginável fazer um plano de dez anos sem levar em conta os efeitos numéricos das medidas propostas. É a partir desse trabalho técnico inicial que os ministros da área política, numa democracia, devem negociar posteriormente com o Congresso para aprovar as medidas que o governo defende.

É preciso colocar um ponto final na expansão fiscal para poder aspirar a uma maior taxa de crescimento da economia a longo prazo

Há quatro razões para o plano: 1) o Brasil, onde as reformas foram paralisadas depois de 2003, não está se preparando adequadamente para o dia em que a "maré" externa mudar; 2) é preciso aumentar o investimento público e, se não queremos que o gasto continue aumentando em relação ao PIB - trazendo a reboque novas elevações da carga tributária - só há uma solução: diminuir a relação gasto corrente/PIB; 3) é importante assegurar uma boa situação fiscal para o próximo governo, sob pena de que, sem CPMF nem DRU, o Brasil sofra uma crise fiscal séria em 2008; e 4) a agenda parlamentar de 2007 estará repleta de reformas controversas, motivo pelo qual seria desejável "limpar a pauta" e tentar negociar com a oposição uma agenda de consenso, visando diminuir o número de questões a tratar no começo do próximo governo. O plano contém cinco medidas, todas perfeitamente justificáveis: 1) extensão da CPMF, com redução gradual da alíquota a partir de 2008; 2) extensão da DRU, com uma lenta ampliação do percentual de desvinculação, de 2008 a 2013; 3) mudança da vinculação do setor de saúde, para que seus recursos, ao invés de serem indexados ao PIB, sejam atrelados à variação do IPCA e da população, preservando a despesa real per capita; 4) adoção do mesmo princípio para a despesa com pessoal; e 5) definição de um teto para o gasto corrente como proporção do PIB, teto esse ligeiramente declinante ao longo do tempo. Como a queda da relação gasto corrente/PIB seria muito suave, isso permitiria aumentar o gasto em termos reais em torno de 3,5% a 4% ao ano. Não haveria, portanto, qualquer "arrocho". O plano é gradualista e tem consistência. Resta agora fazer o bom debate. Com substância - e com elegância.